quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O antiepilético Depakene (também usado contra distúrbios bipolares) é foco de um gigantesco e bilionário escândalo na França envolvendo seus efeitos colaterais. O que acontece no Brasil, onde o Depakene também é comercializado?

[Na área da saúde, como em várias outras, volta e meia fica-se sabendo de coisas que nos deixam com a nítida e inequívoca impressão de que nós brasileiros somos considerados uma sub-raça pelas empresas farmacêuticas multinacionais, um bando de cobaias que não merecem (nem exigem) respeito. E as nossas "autoridades" contribuem ativamente para isso, fingindo-se de mortas. O caso da Novalgina é clássico: é proibida em vários países de primeira linha, mas aqui é vendida livremente.

No setor automobilístico é a mesma coisa: montadoras fabricam aqui carros muito menos seguros que os de mesma marca que fabricam fora do Brasil. Ver, por exemplo:

O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Depakene, um escândalo de 6 bilhões de  euros

Anne Jouan  -- Le Figaro, 14/0/2016


Pelo menos 12.000 crianças nasceram na França com problemas atribuíveis ao Depakene [cujo nome comercial é Dépakine nesse país] - (Foto: Garo/Phanie)


Segundo as contas feitas pelo Le Figaro, o custo das más-formações para a sociedade alcança já vários bilhões de euros. Resta saber quem do Estado ou do laboratório farmacêutico pagará a fatura final.

Assim, 12.000 "crianças Depakene" teriam nascido na França entre 1967 e 2015. Essa cifra estarrecedora resulta de cálculos feitos por Catherine Hill, epidemiologista e ex-membro do conselho científico da agência de medicamentos (ANSM - Agência Nacional de Segurança do Medicamento e dos Produtos de Saúde, França), que já havia trabalhado no caso Mediator [remédio contra a diabete usado durante anos como moderador de apetite na França, onde provocou centenas de mortes] e aborda regularmente o tema dos malefícios do álcool.

Para chegar àquela conclusão, ela partiu dos resultados do seguro-doença e da ANSM, publicados no final de agosto. Segundo as duas instituições, entre 2007 e 2014 mais de 14.000 foram "expostas" ao valproato de sódio, a substância ativa do Depakene, do Depakote e da Dopamina. A epidemiologista usou também os dados disponíveis sobre as vendas anuais de valproato de 1983 a 2015. Ela partiu da premissa de que a relação entre as grávidas expostas e as vendas era constante antes de 2007 e igual à relação observada em 2007, e que em 2015 era igual à de 2014. Para Catherine Hill, com base na totalidade de vendas do produto na França entre 1967 e 2015, um total de 50.000 foram expostas ao valproato durante uma gravidez, seja para cuidar de uma epilepsia seja para tratar de problemas de bipolaridade.

Dessas 50.000 grávidas, 30.000 crianças nasceram vivas. Sabe-se que 10% das crianças expostas ao valproato no útero têm más-formações, o que corresponde a 3.000 crianças malformadas, e que 40% dessas crianças terão problemas neurocomportamentais, ou seja 12.000 crianças. Como algumas dessas crianças acumulam esses problemas, inclusive entre 1967 e 2015, pelo menos 12.000 crianças portanto nasceram na França com problemas imputáveis ao Depakene. 

A partir dessas estimativas, o Le Figaro usou sua calculadora. Tomamos o dossiê de expertise judiciária de uma criança moderadamente afetada, avaliamos seu custo e depois o multiplicamos por 12.000, o número de crianças Depakene nascidas desde 1967. Resultado: um custo de 6 bilhões de euros para a sociedade, para cuidar das deficiências dessas crianças desde o nascimento até os 18 anos. (...)

Segundo especialistas legais, as deficiências provocadas numa criança pelo Depakene fazem com que ela precise da presença de uma terceira pessoa duas horas e meia por dia, para a vida quotidiana e para a escolar. A criança precisa igualmente ser ajudada durante o período escolar por um Ajudante de Vida Escolar [AVS, na sigla em francês -- pessoa que se ocupa do acompanhamento, da socialização, da segurança e da ajuda à escolarização de crianças em situação de deficiência ou que apresentem problemas de invalidez por questões de saúde, seja no ensino normal seja no especializado] pago diretamente pelo governo via Ministério da Educação por 10 horas semanais. A esses custos se junta a ajuda de custo a ser dada aos pais até que a criança chegue aos 18 anos, no valor de 300 euros por mês. Ou seja, no mínimo um total de 500.000 euros imposto à sociedade até que a criança afetada alcance sua maioridade. Assim, multiplicando-se esse valor pelo número de crianças calculado por Catherine Hill chega-se ao montante de 6 bilhões de euros.

Fica a questão fundamental: quem pagará isso? Por enquanto, é a coletividade nacional que arca com esses custos. Mas, o Estado, que se encarrega das vítimas, desejará ser reembolsado posteriormente pelo fabricante do medicamento ou decidirá fazer com que opere apenas a solidariedade nacional? A criação de um fundo de indenização está em discussão entre o Ministério da Saúde e as famílias das crianças afetadas.

[Ver também:


Em outra reportagem, o Le Figaro informa que o laboratório Sanofi, fabricante do Depakene, afirma às famílias atingidas que é o Estado que deverá indenizá-las. Consultado por carta pelo jornal, o laboratório respondeu através de seu diretor presidente geral Marc-Antoine Lucchini: "Nos permitimos lembrar-lhes que os riscos terapêuticos, notadamente os iatrogênicos (consequências nefastas sobre o estado de saúde provocadas por ato ou medida praticado ou prescrito por um profissional da saúde) são custeados pelo Oniam [sigla francesa para Birô Nacional de Indenização de Acidentes Médicos], que propõe um procedimento de indenização rápido que deveria poder responder às expectativas dos senhores e das famílias atingidas por tais situações".

Em sua edição impressa de 8 de setembro de 2016, a revista francesa Le Point escreve em reportagem de Jerôme Vincent: 

"A equação é simples. Sabendo que o ácido valpróico (Depakene, Depakote, ...) é um tratamento principal da epilepsia e de segunda intenção para distúrbios bipolares, ao qual 51.512 mulheres em idade de procriar foram submetidas no primeiro trimestre deste ano; sabendo que esse produto acarreta para os bebês expostos in utero um risco elevado de más-formações congênitas e um risco acrescido de autismo e de retardo de aquisição da linguagem e/ou da locomoção, a ponto de que se solicita que seja proibido durante os dois primeiros meses de gravidez ou se possível além disso, salvo indicação excepcional, os médicos que o receitam são responsáveis e negligentes para com seus pacientes?

O Dr. Hubert Journel, pediatra e geneticista no hospital de Vannes, tem uma opinião fundamentada sobre o assunto já que foi um dos primeiros especialistas franceses a emitir um alerta sobre os perigos dessa molécula nos anos 80 e acompanha dezenas de pessoas congenitamente malformadas e intelectualmente reduzidas na Bretanha. 

"Em geral, os neurologistas ou os psiquiatras que cuidam das mulheres epiléticas ou maníaco-depressivas não se comunicam com os clínicos gerais que prescrevem e prorrogam as receitas, nem com os ginecologistas-obstetras que acompanham a mulher durante sua gravidez até o parto", diz ele. "Os ginecologistas e os clínicos gerais não mais se falam de maneira constante ou habitual. Não há na França a profissão do assistente médico, que auxilia o médico e se encarrega da educação terapêutica das mulheres em idade de procriar e de sua informação sobre medicamentos. Creio que os milhares de médicos que ainda prescrevem o Depakene durante a gravidez o fazem por ignorância.  

"De 80 a 90% das mulheres grávidas epiléticas sob esse tratamento podem beneficiar-se de uma alternativa: suspensão de todo tratamento, diminuição das doses, tomar uma dose por dia em vez de duas ou três, submeter-se a um outro tratamento epilético de menor risco. Mas, permitamos algumas desculpas a esses médicos. Algumas mulheres têm um desejo de ter um filho mais forte do que a percepção dos riscos do tratamento. Durante vários meses, é bastante fácil esconder uma gravidez de seu médico. Enfim, há razões médicas para dar ácido valpróico a uma mulher epilética grávida que não responde senão a esse tratamento". 

Em todo caso, a prescrição abusiva de um medicamento perigoso não é erro exclusivo do Estado ou da indústria farmacêutica.

No Brasil, o Depacon, o Depakene e o Depakote -- todos à base do valproato de sódio -- são produzidos e vendidos pela Abbott Laboratórios do Brasil Ltda. Diante do exposto acima, cabe perguntar: 
  • o que já foi feito no Brasil, nos moldes do que se fez e se vem fazendo na França, sobre o uso do Depakene e de outros medicamento com valproato de sódio por mulheres epiléticas grávidas? Se foi feito algo, quais os resultados obtidos?
  • quais são a posição e a orientação do Ministério da Saúde, da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, da Anvisa, do Conselho Federal de Medicina e de quem mais seja sobre o assunto? E da Abbott, que fabrica o Depacon, o Depakene e o Depakote?]



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