domingo, 27 de novembro de 2016

Médicos e atendentes de hospitais franceses sofrem uma agressão, verbal ou física, a cada meia-hora

[Relato surpreendente da violência diária que ocorre em hospitais franceses, contra empregados em geral e até contra médicos e enfermeiros, publicado no Le Figaro. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Comunicado de emergência

Editorial do Le Figaro - Yves Thréard - Le Figaro, 27/9/2016

Ele fraturou as duas mãos no exercício da sua profissão. O doutor Armand N. trabalha na emergência do hospital de Saint-Denis. Seus ferimentos não são acidentais. Ele foi agredido pelo irmão bastante irritado de um paciente entregue aos seus cuidados após uma briga. Isso foi há quinze dias, mas não há mais um dia nos hospitais da França sem que seus empregados sejam alvos de injúrias, de agressões físicas e inclusive de intimidações a mão armada. Segundo o Observatório Nacional de Violências na Saúde, um fato desse tipo se repete a cada trinta minutos, sem contar os que não são denunciados.

Juntamente com os serviços de psiquiatria, os atendimentos de emergência são os mais afetados. Principalmente na Île-de-France [uma das 27 regiões administrativas da França; a Região da Ilha de França é composta por oito departamentos: Paris, Essonne, Hauts-de-Seine, Seine-Saint-Denis, Seine-et-Marne, Val-de-Marne, Val d'Oise e Yvelines. Entre suas principais cidades estão: Paris, Versalhes e Nanterre.]. Em questão, a visita de pessoas bastante alcoolizadas e as longas esperas por atendimento. Cada vez mais frequentemente também, as exigências de doentes que se recusam a ter que lidar com um atendente masculino ou feminino. Inúmeros enfermeiros, parteiras e médicos não têm senão sua coragem para enfrentar a adversidade, e seu senso agudo do dever, para não sucumbirem.

Os serviços de urgência são um pouco o covil dos mendigos e dos ladrões. Duas cifras bastam para traduzir esse mal-estar crescente: 19 milhões de atendimentos registrados em 2015, contra 12 milhões em 2002. Pacientes, enfermos de pequenos "dodóis", para ali se dirigem por não terem outra opção, na falta de consultórios médicos disponíveis [fora dos hospitais]. Inúmeros outros se aproveitam do acesso fácil a cuidados gratuitos através, por exemplo, da ajuda médica do Estado a estrangeiros. Isso custa, em média, um bilhão de euros à coletividade. Enfim, os setores de emergência são o reflexo do aumento da violência nas ruas.

É preciso, claro, reforçar a segurança nos hospitais como nos estabelecimentos escolares. Mas, acima disso, essas duas instituições bem enfermas têm todos os sintomas reveladores da crise que afeta nossa sociedade. A resposta não pode pois ser senão política.

Os hospitais franceses enfermos pela violência

Anne Jouan e Damien Mascret -- Le Figaro, 27/9/2016

"Não se pode dizer que há mais violência (no hospital), mas sua origem ou sua forma mudaram". É o que afirma o Observatório Nacional de Violências em Ambiente de Cuidados, um organismo sob tutela do Ministério, em seu relatório anual de 2015. "O que aumenta é o agravamento da sensação de insegurança sentido pelas pessoas da área da saúde. Tornou-se muito baixa a tolerância frente a violências cujas causas são às vezes mal identificadas ou diante de violências gratuitas".

O relatório cita os principais motivos da violência. As críticas relativas ao atendimento prestado ocupam o primeiro lugar (com mais de 58% das causas de violência observados), seguindo-se o alcoolismo (12%) e o tempo para atendimento considerado excessivo pelos pacientes (11,6%). 

Na classificação das descrições de violências contra pessoas feita pelo Observatório, as ofensas, os insultos e provocações aparecem em primeiro lugar, com 36,7% dos casos. O Observatório registra, com sobriedade, que nos serviços de emergência  "as agressões verbais são diárias e as agressões físicas, numerosas". 

No hospital, uma agressão a cada meia-hora

Anne Jouan  -- Le Figaro, 26/9/2016

Terça-feira, 13 de setembro [2016], 22h49, setor de emergências do Hospital Delafontaine em Saint-Denis, norte de Paris. Um homem dá entrada com traumatismo craniano. Ao seu lado seu irmão se agita, fica inquieto, se irrita. É o médico Armand N. que sofre as consequências da cólera fraternal. O homem o agride violentamente. Ele lhe rompe as duas mãos, a ponto do médico ter que ser levado imediatamente para ser operado. O médico ficará durante 50 dias com incapacidade temporária de trabalho. [Ver texto completo, em francês, no link do título desta seção.]

Em Créteil, a colocação de um botão de alerta

Damien Mascret -- Le Figaro, 27/9/2016

É o maior setor de emergências do Vale do Marne. A cada ano, o Centro Hospitalar Intercomunitário de Créteil (Chic) recebe 100.000 pessoas, entre crianças, adultos e gestantes. Praticamente sem confrontos. A arquitetura foi concebida para separar a sala de espera dos locais de atendimento médico, botões de alerta deflagram a chegada de um agente da segurança, os vigias intervêm graças ao videomonitoramento ...

Christophe Prudhomme: "Formar pessoal apto para a contenção física"

Anne Jouan -- Le Figaro, 27/9/2016

Christophe Prudhomme é o porta-voz da Associação do Médicos de Emergência da França (Amuf, na sigla francesa) e trabalha no Samu [Serviço de Ajuda Médica de Urgência] de Bobigny. Para ele, o problema vem em parte do número muito grande chegando às emergências, da falta de clínicos gerais [médecins généralistes -- também chamados "médicos de família" e médicos da cidade (médecins de ville) ou médicos de bairro -- médicos que diagnosticam os sintomas antes de tratar a doença ou enviar o paciente a um outro especialista]: "Como nossos colegas médicos clínicos gerais estão sobrecarregados, os doentes se dirigem aos hospitais, aos serviços de emergências". Segundo ele, "é preciso formar pessoal hospitalar em gestão da violência, onde se aprenderá a mediação e a contenção física, seja com relação a pacientes agressivos ou para doentes mais de caráter psiquiátrico. Existem técnicas para reduzir o nível de agressividade".

Laicidade: o hospital sob tensão comunitária

Caroline Beyer -- Le Figaro, 27/9/2016

Uma enormidade de ferramentas teóricas e muito poucos avanços concretos sobre o tema da laicidade no hospital. É a constatação feita por Annick Girardin, ministra da Função Pública. Em setembro, instalou uma comissão "Laicidade e a função pública", que era esperada gerar suas recomendações em meados de novembro. "Cartas, guias, vade-mécum ... Se já existe um certo número de coisas, observa-se que na ausência de sua hierarquia os agentes nos falam de uma forma de abandono e sofrimento", explica a ministra, que no dia 23 de setembro esteve no hospital Bichat, em Paris, para escutar seus empregados. 

Pacientes recusando-se a serem examinados por um médico do sexo oposto, ou que sua mulher o seja, recusas de fazer transfusão, tensões por ocasião de visitas de familiares quando os pacientes estão em quartos duplos, regime alimentar particular, inclusive para bebês ... O hospital público é confrontado por reivindicações religiosas. Epicentros dessas tensões: as emergências e as maternidades.

"Por pouco teríamos um centro islâmico no bairro, eles impõem suas condições nas emergências! Nós estamos na linha de frente", deixa escapar Patrick Pelloux, presidente da Amuf. "Todas as religiões têm fixação pela saúde, que afeta a vida e a morte", prossegue ele, descrevendo "um combate do islamismo conservador intransigente para se apossar da saúde". Violento, ele denuncia as violações da laicidade pelo pessoal que presta atendimento e que é obrigado a respeitar a a estrita neutralidade, e face ao que ocorre reclama da "falta de coragem de certos médicos e de diretores de faculdades de medicina", que toleram o véu em suas dependências. 

Em dezembro de 2015, em uma nota dirigida aos diretores de hospitais, o diretor-geral do AP-HP [Assistência Pública - Hospitais de Paris] explicava que havia sido abordado por vários diretores para que esclarecesse a questão dos uniformes ou padrões de vestimentas para o pessoal e as tentativas de contorná-las/desrespeitá-las. Lembrando a rejeição, pela Corte Europeia dos Direitos do Homem, da petição de uma mulher usuária de véu, ele explicava que "o uso de gorro/carapuça ou qualquer outro tipo de capuz não pode ser admitido fora dos locais em que são recomendados. Isso, da mesma forma, se aplica às roupas que acobertam/escondem quem as veste", acrescenta a nota. 

"Vivemos uma regressão", constata por seu lado Philippe Deruelle, secretário-geral do Colégio Nacional de Ginecologistas e Obstetras franceses, que em 2006 alertava os poderes públicos, após a agressão de ginecologistas por maridos de pacientes. Ele descreve profissionais confrontados com o sofrimento psicológico de proibidas de usar contraceptivos e coagidas a uma gravidez que não desejam. No hospital Jeanne de Flandre de Lille, onde clinica, a reunião feita a cada dois meses para realizar um balanço das violências nas emergências médicas registra de cinco a seis casos ligados ao islamismo conservador intransigente.



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