quinta-feira, 7 de julho de 2016

A Venezuela que não tem crise

[Assim como em praticamente todos os países, durante quaisquer crises há uma parcela da população que permanece imune aos problemas que afetam a maioria de seus compatriotas. A Venezuela não foge a essa regra, como mostra uma reportagem de Juan Paullier no site BBC Mundo, que traduzo a seguir. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Os produtos de luxo têm mercado na Venezuela - (Foto: BBC Mundo)

Golpeada pela insegurança, a noite venezuelana perdeu vigor mas continua sendo Venezuela, onde sobrevivem a alma caribenha e a festa à flor da pele.

Um empresário de 50 anos falou com o BBC Mundo em sua casa em El Hatillo, uma abastada zona residencial de Caracas. Por segurança, prefere que seu nome não seja divulgado. (...)

Mais que a escassez de alimentos, a falta de segurança em Caracas -- que tem um dos índices de homicídios mais altos do mundo -- é talvez onde os mais ricos sentem a deterioração da situação do país. Vive-se com o medo constante de algo aconteça, mas não é por isso que se deixa de viver.

Decidido a seguir desfrutando, esse empresário ainda frequenta seus restaurantes preferidos e esta noite vai a um dos lugares mais exclusivos do país: o Laguna Country Club, onde um título de membro pode alcançar os 100 mil dólares. Ainda que ele não seja sócio, é convidado de seus amigos.

Há até pouco tempo, ganhava até 30 mil dólares por mês mas agora não chega a mil dólares, desde que a produção de sua empresa caiu em 90% nos últimos tempos. Disse que isso resulta das dificuldades pelo governo e, mesmo decidindo fazer como devido se viu afetado. Mantém seu estilo de vida graças a  outros negócios no exterior.

Prateleiras quase vazias, uma cena comum nos mercados populares da Venezuela - (Foto: BBC Mundo)

(...) Um amigo seu, que durante anos trabalhou na bolsa de valores e agora é um colecionador de arte, admite que poderia viver em sua casa em Miami mas diz que, apesar de tudo, quer viver na Venezuela. É uma de várias pessoas de diferentes estratos sociais que acreditam que quanto pior a situação, melhor: "tudo tem que terminar explodindo, para que comece o longo caminho da reconstrução".   

Sem filas

O empresário é um deles. Vive comodamente, mas consciente da realidade do país. Diz que a situação é insustentável. Ainda que não sofra as quase quatro horas e meia diárias que, em média, um venezuelano leva para comprar alguns dos produtos regulados pelo governo, ele não está alheio à crise. Como o resto das pessoas de seu nível, adquire comida por outros meios.

Costuma conseguir os alimentos através dos empregados de sua empresa, mas deixou de fazê-lo quando quiseram cobrar-lhe 40.000 bolívares (cerca de US$40 no mercado negro) por 20 kg de farinha PAN (farinha de milho pré-cozido, ingrediente básico das  arepas). No mercado regulado, o quilo custa 19 bolívares. [As arepas são um alimento tradicional na maioria dos países latino-americanos de língua espanhola, onde são um alimento tradicional da dieta básica. Lembram um pouco a nossa tapioca.]

Ele se considera de classe média, e não um rico. "Me sinto um pobre ao lado dos meus amigos", brinca.

Seu filho de 19 anos conta que há  pouco sequestraram um conhecido e quando se soube disso em seu círculo, um amigo chegou com US$70.000 em dinheiro para pagar o resgate. 

Outros têm jatos para viagens ao exterior e teco-tecos para festejar um aniversário no arquipélago de Los Roques [um lugar de uma beleza incrível!]. Há uma Venezuela que ainda vive assim.

Alguns restaurantes continuam tendo boa clientela em Caracas - (Foto: AFP)

Uma Venezuela em que os restaurantes continuam cheios, em que nas lojas de produtos importados há fila para pagar. Em que uma mulher compra numa terça-feira ao meio-dia uns luxuosos brincos Swarovski em um centro comercial.

Uma Venezuela em que os aniversários continuam sendo comemorados com uísque 18 anos, em que trazem músicos famosos para a festa de uma debutante de 15 anos e em que uma senhora comemora com suas amigas com um show privado de Luis Miguel [um dos mais famosos e caros cantores mexicanos].

Uma classe especial

Podem ser grandes empresários, diretores de empresas, profissionais bem sucedidos e "boliburgueses", pessoas próximas ao chavismo que fizeram suas riquezas graças ao governo.

Quem tem acesso a dólares na Venezuela ainda vive comodamente, ao contrário de muitos que apenas conseguem sobreviver. Calcula-se que essa classe represente 16% da população, um pouco menos de 5 milhões de pessoas. Se dividem em um segmento A/B, que passou de 3,1% em 1999 a 1,3% este ano, e o C, que era 18,2% quando Hugo Chávez chegou ao poder e agora é 14,8%.

É um grupo da população que, historicamente, se acostumou a um nível de vida elevado em um país petrolífero. 

"Desde os ano 80 ninguém faz poupança em bolívares, a Venezuela tem estado supervalorizada, ganhávamos dólares aos borbotões e agora há poupanças relevantes em divisas, muito mais do que em qualquer outra classe média-alta da América Latina", explica Luis Vicente León, economista e diretor da Datanálisis, uma empresa de pesquisas de opinião.

Embora mantenham seu nível de vida, ele diz que "essas pessoas estão perdendo capacidade de comprar e estão encarecendo suas vidas de maneira significativa. Suas economias e suas receitas se reduzem, seu fluxo de caixa se interrompeu e estão vivendo do que fizeram, não do que estão fazendo". 

A história conhecida

Protestos na Venezuela pelo preço da farinha pan - (Foto: AFP)

A outra face do país, a mais conhecida, é a daqueles que têm que passar por cinco lojas ou supermercados para fazer as compras. A das pessoas que fazem filas e filas. Nelas ficam aqueles que não podem ou não querem recorrer ao mercado negro e aos "bachaqueros", que compram produtos a preços regulados e os vendem a preços muito superiores no mercado paralelo. 

No meio da escassez de alimentos por que passa a Venezuela, há comida. Os mais de 40 produtos básicos que estão há 13 anos com seus preços regulados pelo governo são os mais difíceis de se encontrar. O resto pode-se conseguir. Entrar em um supermercado não é problema, a menos que seja para comprar um desses produtos. 

Se vêem frutas e verduras barracas de rua em Petare, um bairro popular no leste de Caracas (ainda que às vezes as pessoas se resignam passar ao largo delas, por causa dos preços). E o açúcar e o café se vendem em pacotinhos de 100g ou menos para aqueles que não têm dinheiro para comprar um quilo. 

   Pacotinhos de açúcar e café, vendidos por gramas - (Foto: BBC Mundo)

Com uma inflação anual de 180% em 2015 e que pode chegar a 720% este ano, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a imensa maioria dos venezuelanos não tem dinheiro suficiente para comprá-los. Resultado: as pessoas se alimentam menos e pior. 

"Não entendíamos o sofrimento dos pobres"

Uma mulher de classe média-alta que vive com sua família na zona residencial de Caurimare explica ao BBC Mundo que há três meses fazia fila uma vez ou outra para conseguir comida. Deixou de fazê-lo quando a encarregada do supermercado a alertou de que a situação começara a ficar violenta.

Com dificuldade, consegue os produtos através de contatos e tem números de "bachaqueros" em seu celular, mas garante que não os usou. Sua dieta variou um pouco, mas não é motivo para alarme, diz ela, alimentos podem ser substituídos. A preocupação real é com a falta de medicamentos. Aí as distinções entre classes desaparecem um pouco.

O que mais afeta as classes ricas da Venezuela é a falta de segurança - (Foto: AFP)

"Tenho um seguro de saúde nos Estados Unidos, mas não vou tomar um avião por uma insignificância, mas pode surgir uma complicação e a gente morre por coisas pelas quais não deveria morrer", explica.

Seu marido é médico e não consegue os remédios para tratar a psoríase que lhe afeta uma das mãos. Enquanto isso, como ocorre com o empresário, a insegurança parece ser sua maior preocupação. Em sua casa há cada vez menos saídas e mais convivência familiar, mas ela diz que, apesar dos riscos, não quer ter suas filhas enclausuradas. À noite, só sai com elas no carro blindado de seu irmão.

O medo se faz presente. Dias atrás, uma amiga morreu em um sequestro. "Isso tem que explodir logo", afirma, mas tem esperança quanto ao futuro. 

Sua filha de 17 anos vai todos os domingos a Petare para fazer tarefas de apoio escolar a crianças da região. "Nós, a minha geração, não entendíamos o sofrimento dos pobres", acrescenta. "Agora, as novas gerações têm outra noção sobre a realidade do país", e ela espera que sejam elas as encarregadas de levar a Venezuela adiante.


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