sexta-feira, 15 de julho de 2016

A estreita relação entre Einstein e Freud, relativamente falando

[Traduzo a seguir artigo de David Bargal e Ofer Ashkenazi publicado no jornal israelense Haaretz. David Bargal é professor emérito de trabalho social na Universidade Hebraica de Jerusalém, e Ofer Ashkenazi é chefe do Centro Minerva Richard Koebner para História Alemã na Universidade Hebraica. Abre-se uma janela sobre o relacionamento de dois gênios da humanidade. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Sigmund Freud nos anos 1930 - (Foto: AP)

6 de maio foi o 160° aniversário do nascimento de Sigmund Freud. Nas semanas que antecederam seu aniversário de 80 anos em maio de 1936, ele reclamou com seu fiel biógrafo Ernest Jones que não considerava isso motivo de comemoração. Mas no fundo de seu coração, ele desfrutava muito do reconhecimento internacional que havia obtido e das expressões de admiração que lhe foram enviadas pelos principais heróis culturais da época. 

Proeminentes entre os que o felicitaram estavam os escritores Thomas Mann, Romain Rolland, H.G. Wells, Virginia Woolf, Stefan Zweig e outros 191 autores e artistas. Albert Einstein também lhe escreveu, e Freud lhe enviou uma resposta minuciosa, repleta de humor gentil mas afiado. A troca de cartas foi parte da duradoura correspondência entre esses dois gigantes da ciência e da cultura, que deixaram suas marcas no acúmulo de conhecimentos e na consciência do século 20 e depois.  

É uma correspondência ímpar, baseada de um lado no profundo respeito mútuo e, de outro, na completa falta de conhecimento da área de pesquisa do outro (e, no caso de Einstein, também com dúvidas sobre o valor científico de seu colega). Essa combinação de fatores fez com que os dois discutissem os princípios que moldaram suas visões do mundo e seus sensos de identidade e de identificação.

Freud escreveu a seu sobrinho na Inglaterra em 1926: "Judeus no mundo inteiro exaltam meu nome, comparando-me com Einstein". E na cerimônia de lançamento de pedra fundamental na Universidade Hebraica de Jerusalém em 1925, o renomado Lord Balfour mencionou Freud, citando-o como um dos três judeus que mais haviam influenciado a filosofia e a cultura modernas. Os outros que mencionou foram Einstein e o filósofo francês Henri Bergson.

Em 1928 Einstein, ele próprio um laureado com o Nobel, se recusou a endossar a candidatura de Freud ao Prêmio Nobel. De acordo com o biógrafo Peter Gay, Einstein afirmou que "não poderia dar nenhuma opinião confiável sobre a veracidade do ensino de Freud", acrescentando que "lhe parecia duvidoso que um psicólogo como Freud pudesse realmente ser elegível para o Prêmio Nobel de Medicina que, 'suponho, é o único que pode ser considerado'".

Após um pedido de representantes da Liga das Nações, Einstein dirigiu-se a Freud em julho de 1932, iniciando uma troca de cartas sobre a possibilidade de compreender as razões para uma guerra contemporânea e talvez até mesmo evitar a deflagração de outra guerra na Europa.

Ao final de seu apelo a Freud, Einstein escreveu: "Sei que em seus escritos podemos encontrar respostas, explícitas ou implícitas, para todos os temas desse problema urgente e absorvente. Mas seria da maior ajuda para todos nós se você apresentasse o problema da paz mundial à luz das suas descobertas mais recentes, pois tal apresentação poderia muito bem marcar um caminho para novos e frutíferos modos de agir".

Ao final, a despeito de sua mútua repulsa à violência maciça, as abordagens de Einstein e Freud em relação à guerra eram completamente diferentes. Enquanto Freud ligava a violência a desejos ou impulsos básicos psicológicos fundamentais das pessoas, Einstein enfocava os aspectos políticos das fontes de violência. Ele [Einstein] considerava que basear a ordem mundial em nações-estados com soberania ilimitada levaria necessariamente à negação dos direitos humanos dentro do estado e a tensões internacionais intermináveis.

"Bela concepção"

A discordância sobre o tema das razões para a guerra não interrompeu a estreita relação entre os dois homens. Em sua carta por ocasião do 80° aniversário de Freud, Einstein escreveu que não havia dúvida de que Freud não facilitara em nada para o homem leigo julgar suas descobertas de maneira independente. "Até recentemente eu podia apenas entender sua linha de raciocínio, sem estar em uma posição de formar uma opinião definitiva sobre o quanto de verdade ela contém", escreveu Einstein. "Não faz muito tempo, tive a oportunidade de ouvir sobre alguns exemplos que, na minha opinião, excluem qualquer outra interpretação do que aquela fornecida pela teoria da repressão. Fiquei encantado por cruzar com elas, pois é sempre encantador quando uma grande e bela concepção confirma ser consistente com a realidade".

Em um pós-escrito, Einstein implorou a Freud que não respondesse sua carta pois o verdadeiro prazer de enviar os parabéns era sua recompensa. Não obstante, Freud respondeu em 3 de maio de 1936 escrevendo: "Você luta em vão contra a hipótese de eu responder sua carta encantadora. Realmente, tenho de dizer-lhe quão deleitado estou de saber da mudança em sua maneira de pensar, ou pelo menos de um movimento nessa direção. É claro que sempre soube que você me admirava apenas por uma 'questão de educação', e que muito poucas de minhas afirmações o convencem. Mas tenho me perguntado frequentemente o que realmente há para se admirar nelas se não forem verdadeiras -- isto é, se não contiverem uma alta dose de verdade. Incidentalmente, você não acha que eu teria sido tratado muito melhor se minhas doutrinas tivessem incorporado uma porcentagem maior de erros e loucura?".

"Você é tão mais jovem que eu: e talvez eu possa esperar que quando você alcançar a minha idade se tornará um discípulo meu", prosseguiu Freud. "Como não estarei aqui para saber disso, estou antecipando agora minha satisfação".

Albert Einstein - (Foto: AP)

Em maio de 1939, doente e perseguido pelos nazistas, Freud estava perto de trocar Viena por Londres. Einstein escreveu-lhe na época, agradecendo-lhe pelo envio de uma cópia de seu último livro, "Moisés e o Monoteísmo". Freud necessidade de toda e qualquer demonstração de apoio após as idéias heréticas que levantara nesse livro, que afirmava que Moisés era um nobre egípcio. Entretanto, juntamente com essa afirmação -- que irritou muitos intelectuais judeus -- Freud apresentava uma mensagem nova, atribuindo ao judaísmo um papel central no desenvolvimento da cultura e da ética ocidentais. Segundo Freud, Moisés o líder representava o tipo de relações recíprocas que deveriam se desenvolver entre líderes e seus seguidores em uma sociedade ocidental democrática, que é racionalista em sua orientação e direcionada a desenvolver indivíduos adultos que possuem um sistema de valores ético, autônomo e interiorizado.

Através de seus valores, Moisés representava a personificação/materialização da abordagem e do autocontrole racionais sofridos em processos de sublimação pessoal, na opinião de Freud. Graças a isso, ele foi capaz de receber e articular Os Dez Mandamentos, o código ético que guia a cultura ocidental até hoje. A região que Moisés legou não era fundamentalista, exigindo de seus seguidores um alto nível de responsabilidade pessoal, acreditava Freud.

Parece que também Einstein podia identificar-se com um líder exemplar como Moisés, que era apresentado como o ideal preferido em contraste com a liderança de Hitler e o fascismo. Estranhamente, essas ideias são como um eco do que Einstein havia escrito uma década antes em seu elogio póstumo a Gustav Stresemann, o político alemão que colaborou para o estabelecimento e a estabilização da República de Weimar. [República de Weimar  é o nome por que é conhecida a república estabelecida na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, e que durou até ao início do regime nazista, em 1933, tendo como sistema de governo uma democracia representativa semi-presidencial. O Presidente da República nomeava um chanceler que era responsável pelo poder executivo. Quanto ao poder legislativo, era constituído por um parlamento federal (Reichstag) e por parlamentos estaduais (Landtag). O nome oficial da Alemanha continuou, sob a República, a ser Deutsches Reich (literalmente, Império Alemão). Este período tem o nome de Weimar pois foi nesta cidade Alemanha central (Turíngia) que reuniu desde 6 de fevereiro até 11 de Agosto de 1919, data da aprovação da nova constituição, a assembleia nacional constituinte da República.
As circunstâncias em que foi criada a República de Weimar foram muito especiais. Prestes a perder a Primeira Guerra Mundial, a liderança militar alemã, altamente autocrática e conservadora, atirou o poder para as mãos dos democratas, em particular o SPD, que acabou por ter de negociar a paz (ou seja, a derrota na guerra). Com isso, ficava no ar o saudosismo de uma nação outrora poderosa, nos tempos do imperador, em comparação com a nova realidade democrática, cheia de derrotas e humilhações. Sebastian Haffner chamou-lhe uma "república sem republicanos". Kurt Tucholwski chamou-o: "o negativo de uma monarquia, que só não o é porque o monarca fugiu" (o imperador Guilherme II viu-se obrigado a abdicar).
Face a essa situação política, que alguns compararam a um presente envenenado à democracia, acabou por lançar os fundamentos que permitiram mais tarde a Adolf Hitler posicionar-se como o arauto de um regresso ao passado imperial e antidemocrático da Alemanha e implantar o nazismo.]

Einstein escreveu em 1929 que Stresemann possuía características encontradas em líderes proeminentes. Ele observou que Stresemann não agia como representante de uma casta, profissão ou estado específico, e que não era em nada parecido com gente desse tipo. Em vez disso, ele agia como um intelectual e o portador de uma ideia. Einstein escreveu que Stresemann se diferenciava de políticos padrões exatamente como um gênio é diferente de um profissional.

O pai da teoria da relatividade e o pai da teoria das relações emocionais concordavam nesse tema.


Nenhum comentário:

Postar um comentário