domingo, 10 de abril de 2016

Os vazamentos de informações através da história

[No momento em que vazamentos de documentos e informações ocorrem no mundo inteiro, aqui e lá fora, abalando estruturas e governos, traduzo a seguir artigo interessante a esse respeito publicado no site BBC Mundo. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]


A história está cheia de documentos secretos que foram vazados publicamente, desde que um mensageiro se atreveu a abrir um lacre real - (Foto: Thinkstock)

Você pode dizer o que quiser sobre a recente onda de vazamentos, mas não que tais vazamentos dêem lugar a que se esmaguem os testículos de alguém. Tampouco, até onde sabemos, ninguém foi trancado em um templo até morrer de fome.

Edward Snowden e Julian Assange não são universalmente populares, mas até seus críticos mais severos não insinuaram que suas ações provocaram uma revolta militar ou fizeram com que políticos fossem removidos de seus ambientes de debates para serem estrangulados pelas multidões.  

Entretanto, todos esses horrores aconteceram sim durante a longa e amiúde violenta história dos vazamentos.

Esparta

Tomemos por exemplo essa fome intensa forçada em um templo. Isto ocorreu em Esparta por volta do ano 470 antes de Cristo (a.C.), como consequência direta de uma informação que foi vazada.

O general espartano Pausanias enviou uma mensagem para o rei persa através de um de seus escravos. Pressentindo que havia algo de suspeito, o escravo Argilios abriu a carta e verificou que Pausanias se oferecia para os persas se invadissem a Grécia. Além disso, o general sugeria que matassem o mensageiro para garantir o segredo da oferta.

O general Pausanias, de Esparta - (Imagem: Alamy)

Compreensivelmente, sentindo-se ofendido e insultado pelo caráter de sua missão, Argilios decidiu vazar a carta às autoridades espartanas. 

A Pérsia era o "inimigo mortal" da Grécia, razão pela qual as ações de Pausanias não foram vistas como algo menor do que uma traição. Por isso, como castigo, ele terminou enclausurado em um templo sem nenhum tipo de alimento. Os registros indicam que sua própria mãe se uniu aos cidadãos irritados com a atitude de seu filho para garantir que não escapasse da punição. 

Roma

Na Grécia antiga a política era um assunto relativamente aberto, mas a civilização romana ao contrário esteve repleta de complôs e intrigas em seus últimos anos. E de uma boa quantidade de vazamentos também, segundo o historiador Tom Holland. "Havia uma forma muito intensa de luta política, na mesma escala de hoje em dia", assinala ele. "Vêem-se vazamentos sendo utilizados por aspirantes a políticos favoritos, como intuito de destruir seus rivais". 

O cônsul e orador Cícero encontrou uma coleção de cartas que alertavam sobre uma conspiração contra a República - (Imagem: Getty)

Talvez o vazamento mais famoso da época romana foi a pilha de documentos que apareceu frente à porta de Cícero, cônsul do Senado romano e um destacado filósofo e orador de seu tempo. 

No ano 63 a.C., Cícero estava convencido de que um senador chamado Catilina estava planejando um golpe de Estado mas não pôde comprová-lo. O que encontro à sua porta era uma coleção de cartas dos aliados de Catilina, com todos os detalhes da trama. Nunca se descobriu quem vazou essa evidência crucial, mas de posse dessas cartas Cícero conseguiu convencer seus colegas de Senado de que a República romana estava sob ameaça.

Talvez como recompensa por seu trabalho de detetive, Cícero pôde supervisionar pessoalmente a execução imediata por estrangulamento de todos os conspiradores. 

Os otomanos 

O Império Romano durou séculos, seu lado oriental sobreviveu como Bizâncio até 1453, quando caiu vítima dos otomanos, cuja civilização era conhecida por sua tolerância. Um império multinacional e multiétnico, com um alto grau do que poderia ser chamado hoje de mobilidade social. Até um escravo ou um eunuco poderia subir na hierarquia.

No entanto, havia uma área em que os otomanos  foram famosos por sua severidade, e referia-se ao valor que davam aos segredos. Muitos sultões empregavam surdo-mudos próximos de si para evitar que se propagasse qualquer informação sobre eles e suas ações.

Osman II teve os testículos esmagados antes de morrer - (Foto: Alamy)

O sultão Osman II (1604-1622) tinha mais razões que os demais para temer vazamentos. Havia decidido acabar com a unidade militar de elite conhecida como os janízaros, porque temia que se tornasse demasiado poderosa. De alguma maneira, entretanto, essa informação vazou. Depois, seu próprio vizir foi indicado como sendo a fonte do vazamento [vizir (وزیر em persa) era um ministro e conselheiro de um sultão ou rei da antiga Pérsia e, posteriormente, de um país islâmico. O termo significa "ajudante"].

Quando os janízaros se inteiraram da intenção do sultão, invadiram o palácio de Topkapi, em Istambul, e Osman II teve que suportar que lhe esmagassem os testículos antes de morrer. 

Tempos modernos

Enquanto o Império Otomano declinava, o advento do período moderno no século XIX dava um novo alento à arte dos vazamentos. Agora existia a possibilidade de que a informação vazada pudesse chegar a públicos mais amplos, em vez de limitar-se às pessoas diretamente afetadas. 

John Nugent, do New York Herald, é reconhecido por um dos primeiros grandes furos oriundos de um vazamento. 

A Batalha de Buena Vista, também conhecida como a Batalha de Angostura, foi um dos grandes enfrentamentos na guerra entre México e EUA - (Foto: Getty)

Em 1848, Nugent recebeu detalhes secretos de um tratado para por fim à guerra entre os EUA e o México. Sua decisão de publicar os detalhes do acordo o levaram a receber ameaças de prisão de senadores indignados, que o mantiveram cativo durante um mês. Isso deve ter valido a pena, pois Nugent foi depois promovido a diretor-geral do jornal.

Esse caso definiu um precedente que persiste até hoje, de acordo com Pablo Lashmar, professor de jornalismo na Universidade de Sussex (Brighton, Reino Unido) e antigo jornalista investigativo. 

Os jornalistas que conseguem vazamentos tendem a ser recompensados, diz Lashmar, seja com uma promoção, com um aumento salarial ou com prestígio profissional ampliado, inclusive se enfrentam ameaças de prisão ou de algo pior ao longo do caminho. "Passávamos longas horas nos bares cultivando as fontes. Podia ser um oficial de polícia, um funcionário público ou alguém do departamento de contabilidade de uma  empresa. Nos passavam um envelope e isso era genial", lembra o veterano jornalista. 

Tecnologia

O advento da tecnologia de vigilância fez com que esse tipo de vazamento seja cada vez menos frequente, segundo Lashmar.

A tecnologia tornou possível vazamentos de enormes quantidades de documentos - (Foto: Thinkstock)

Qualquer pessoa com um celular pode ter seus movimentos rastreados, ou pode ser captado por câmaras de segurança. Lashmar assinala que os funcionários públicos se tornaram muito mais receosos de se encontrar com jornalistas, para não serem punidos por sua indiscrição. 

O que substituiu o envelope marrom de antigamente foi o vazamento em massa. O tipo de tesouro repleto de dados como nos Panamá Papers, com milhões de documentos transmitidos de uma só vez [sobre os Panamá Papers, ver aqui e aqui]. É óbvio que foi a nova tecnologia que tornou isso possível. 

Os primeiros grandes vazamentos com os documentos do Pentágono, que revelaram segredos sobre as operações dos EUA no Vietnã, tiveram que ser fotocopiados à mão, página por página. Agora, os registros inteiros de um departamento de uma empresa ou de um governo podem ser carregados em um cartão de memória, com apenas um clique num computador. 

Documentos altamente sensíveis passaram pelas mãos de  pessoas de status relativamente baixo, como o soldado raso Bradley Manning - (Foto: AP)

A jornalista e ativista Heather Brooke utilizou vários vazamentos em sua época e considera que esse novo tipo de "fugas" digitais vieram para ficar. "É muito difícil proteger a informação digital e é muito fácil atacá-la", acredita ela. 

Brooke argumenta que aqueles que armazenam informações digitais têm que culpar a si mesmos, se esses dados chegarem a domínio público. "Estamos em um momento em que todo mundo quer guardar todos os blocos de dados que puder, e guardá-los para sempre. Estão criando um pote de mel para os piratas informáticos, para os empregados descontentes e para qualquer pessoa que queira fazer vazamentos", diz ela. 

Percorremos um longo caminho desde desde os dias em que um mensageiro escravo podia causar estragos em Esparta, só com o abrir de uma carta. No entanto, a mesma assimetria persiste e, talvez, esteja acentuada. Informação é poder, e nesta primeira parte do século 21 a informação é também onipresente. 

Desde o soldado raso do exército americano, Bradley Manning, até o especialista em inteligência contratado Edward Snowden, temos visto pessoas de  status relativamente baixo ter informação em suas mãos e logo revelá-la, deixando seus superiores profundamente comprometidos. Agora, ao que parece, a informação é mais poderosa que a espada.








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