quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Um juiz de direito, Deus e o trânsito

Carteira e cargo de "doutor(a)" há muito tempo são símbolos e instrumentos de prepotência e abuso no país -- para os homens funcionam como um símbolo fálico, com o qual gostam de violentar o próximo e a sociedade; para as mulheres, são usados para resgatar o período de inferioridade e de submissão femininas na sociedade. Em ambos os casos, o país e a cidadania se ferram.

O caso mais recente desse uso abusivo de diploma e cargo ocorreu em uma blitz da Lei Seca no Rio e, sem grande surpresa, envolveu um juiz ou melhor, um magistrado (soa melhor). Os "defensores" da lei, especialmente os togados, têm a sensibilidade à flor da pele. Seria melhor que cada juiz já dirigisse seu veículo devidamente coberto pela toga para pronto reconhecimento e identificação (um crachazinho com retrato, na toga, ajudaria paca), para evitar a trabalheira de sair do carro, tirar a carteira de doutor, se aborrecer com a massa ignara que busca aplicar a lei que ele, magistrado, deveria defender com unhas e dentes (mas com a documentação dele e do carro devidamente em dia e à mão, por favor), etc, etc. 

Os personagens desse bizarro e emblemático episódio do nosso sistema de castas foram, de um lado, a agente de trânsito Luciana Silva Tamburini e do outro, o magistrado João Carlos de Souza Corrêa. Data e local: 12/02/2011, Leblon (zona sul do Rio de Janeiro). Na ocasião, Luciana verificou que o juiz não estava com sua carteira de habilitação e o veículo, sem placas e sem documentos. Assim, o carro do magistrado foi rebocado.


Ele se identificou como juiz e Tamburini interpretou o gesto como uma tentativa de "carteirada", como se diz quando uma autoridade quer usar de sua influência para deixar de cumprir algo que é exigido dos demais. Em resposta, a agente disse que ele era "juiz, mas não Deus" e ele deu voz de prisão a ela. O caso foi encaminhado para a 14ª Delegacia de Polícia, no Leblon, e Tamburini se negou a ir à delegacia em veículo da Polícia Militar.

No julgamento do recurso, foi mantida a pena porque houve o entendimento de que ela abusou do poder e ofendeu o réu e "a função que ele representa para a sociedade". Foi imposta à agente de trânsito uma multa de R$ 5 mil.  A decisão foi do Tribunal de Justiça-RJ.

Não está claro o que quer dizer "ele se identificou como juiz". Se ele estava sem carteira de habilitação (que é um documento de identidade válido em todo o território nacional), ele pode -- e deve -- ter recorrido à sua Carteira de Identidade de Magistrado do Poder Judiciário. Se o fez, não necessariamente estava dando uma"carteirada" na acepção popular do termo -- é a tal da presunção da inocência (ninguém é culpado de nada, até prova em contrário -- o que no Brasil é uma tremenda gozação e funciona ao revés). 

A agente de trânsito extrapolou ao dizer que o juiz não era Deus e estava tentando usar cargo e função para escapar do ilícito? Sei não. O que essa agente já deve ter levado de carteirada no exercício do cargo certamente deu-lhe uma percepção psicológica acima do normal para identificar, num piscar de olhos, quem é que está querendo passar-lhe a perna. Sem essa perspicácia, agente nenhum da lei cresce na vida.

Agora, analisemos o tal juiz. Como é que um magistrado sai dirigindo por aí sem carteira de habilitação e com um carro sem placa e sem documentos?! Ele estava em alguma missão secreta? Mesmo que na sua formação jurídica não constasse nada do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), como é que esse cidadão tirou sua carteira de motorista? A conclusão lógica e elementar (meu caro Watson) é que esse cidadão confiava em sua "imunidade" para cometer tal temeridade -- ninguém pode ser judicialmente excomungado por chegar a uma conclusão tão óbvia.

Vejamos alguns fatos recentes e interessantes da vida do juiz de direito (ou magistrado, como queiram) João Carlos de Souza Correa:

● A carreira de Correa no Tribunal de Justiça começou no dia 18 de novembro de 1998, quando ele foi aprovado em concurso público. Boa parte desses 16 anos foi marcada por atitudes e decisões polêmicas. Em 2010, o juiz foi alvo de uma investigação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por causa de decisões tomadas em processos sobre disputas de terra em Búzios, onde atuou até 2012. Contra Correa, havia duas denúncias por conduta indevida — a mais grave, por supostamente favorecer um advogado que alega ser dono de uma área de cinco milhões de metros quadrados, em Tucuns, zona nobre do balneário.

● Era dezembro de 2007. Às vésperas do Natal, a cidade de Búzios estava repleta de turistas no momento em que um transatlântico atracou próximo a um píer. Um juiz carioca, que trabalhava na Região dos Lagos, viu a cena e teve a ideia de entrar no navio para fazer as compras natalinas nas lojas do free shop. Elas estavam fechadas e, mesmo que não estivessem, seriam de uso exclusivo dos passageiros. O juiz insistiu. O comandante, então, lhe disse que quem mandava na embarcação era ele. A confusão só acabou quando a Polícia Federal foi chamada — de acordo com testemunhas, pelo próprio magistrado, que se irritou ao ser contrariado. Nome do juiz: João Carlos de Souza Correa.

● Quando deu voz de prisão à agente da Lei Seca, ele já tinha experiência no assunto. Em 2007, o magistrado também ordenou a detenção da jornalista Elisabeth Prata após ela divulgar uma carta aberta aos moradores de Búzios denunciando supostas irregularidades praticadas pelo juiz. "Fiz denúncias contra ele à Corregedoria do Tribunal de Justiça. O corregedor da época, em vez de investigar o caso, encaminhou meu e-mail sigiloso para Correa. Ele mandou me prender, passei 12 horas detida e acabei sendo condenada a cinco anos de cadeia. Recorri da decisão e consegui provar minha inocência. Ele é completamente desequilibrado, jamais poderia ser juiz. Não está nem aí para o que é certo e errado, só faz o que bem entende", afirma, ainda indignada, Elisabeth.

● Também em Búzios, o magistrado teria se envolvido numa áspera discussão com um casal de estrangeiros que estava hospedado no Hotel Atlântico, no Morro do Humaitá, perto da Orla Bardot. Os turistas, um francês e uma alemã, reclamaram de uma festa que teria sido promovida pelo juiz em um dos quartos do hotel.

Que me perdoe o magistrado, mas diante desse passado brilhante de Sua Excelência Meretíssima já me filiei como sócio remido ao clube de apoio à agente de trânsito Luciana Silva Tamburini.

Gostaria de abordar a posição da OAB nessa história. O caput do Art. 44 do Capítulo I (Dos Fins e da Organização) do Título II (Da Ordem dos Advogados do Brasil) do Estatuto da Advocacia e da OAB diz: "Art. 44. A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade:
I – defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos 
humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração 
da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;
II – promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos 
advogados em toda a República Federativa do Brasil".
...

O inciso I acima tem o trecho "defender... a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça  ..." que soa como letra morta, enterrada e fossilizada pelo desempenho da OAB nesse caso em tela e em outros. Nesse e em outros casos, a OAB optou comodamente por um silêncio ensurdecedor. No caso da agente de trânsito Luciana Silva Tamburini, a justiça social foi pro beleléu e "rápida administração da justiça" neste país é piada de mau gosto -- essa ação merreca levou três anos para ser julgada, e a sentença saiu encharcada de corporativismo. E a OAB? Muda e queda, com seu costumeiro olhar de paisagem.

Vamos agora ao Tribunal de Justiça (TJ), que se revelou no caso uma piada de mau gosto. Para esse órgão do Judiciário, a agente de trânsito ofendeu "a função que o juiz Correa representa para a sociedade". Por ilação, conclui-se que todos os atos e iniciativas do citado relacionados acima devem ser considerados como exaltação e tributo à tal função. O Globo de hoje (13/11) noticia que a 14ª Câmara Cível do tribunal de Justiça do Rio manteve, por unanimidade, a decisão da juíza de primeira instância Andrea Quintella, que condenou Luciana Silva Tamburini a pagar indenização de R$ 5 mil por danos morais ao magistrado João Carlos de Souza Correa.

Vejam esse trecho da decisão do TJ-RJ: ""(...) Não se olvide que apregoar que o réu era “juiz, mas não Deus”, a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa na sociedade. (...) Em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa. (...) Por outro lado, todo o imbróglio impôs, sim, ao réu, ofensas que reclamam compensação. Além disso, o fato de recorrido se identificar como Juiz de Direito, não caracteriza a chamada ‘carteirada’, conforme alega a apelante"

O próximo passo corporativista e óbvio do TJ-RJ (digo eu e não O Globo) é instituir a "Medalha João Carlos de Souza Correa do Orgulho Jurídico".

E ainda há ainda quem estranhe o baixíssimo conceito e o respeito nulo despertados pela Justiça e pelo Judiciário no país.

Ver também: Luciana e a ética -- Betty Bernardo Fuks - O Globo, 13/11/2014
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PS - Na quinta-feira (06/11), chegou a R$ 20 mil o total arrecadado na campanha pelo Facebook para ajudar a agente do Detran Luciana Tamburini a pagar a indenização para Correa. As doações se encerrarão na próxima terça-feira. A fiscal disse que planeja doar o valor excedente a instituições de caridade.


O juiz de direito João Carlos de Souza Correa que, em 12/02/2011, foi pego dirigindo no Rio de Janeiro sem carteira de motorista um carro sem placa e sem documentos -- e mandou prender a agente de trânsito que o penalizou. -- (Foto: Márcio Alves/Agência O Globo).



Luciana Tamburini , agente da Lei Seca que foi condenada a indenizar juiz parado durante blitz - (Foto: Guilherme Pinto / Agência O Globo)










7 comentários:

  1. Ele não é Deus e Deus ainda perdoa ele, pelo ato discriminatória.

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  2. Caramba !!! Vergonha !!! Eu gostaria de colaborar com o depósito para campanha dessa moça, mesmo sabendo que já chegou a 20.mil / Outra : pela sua postura digna, gostaria que um partido político a procurasse e a preparasse para disputar um cargo de vereadora ou deputada, pois pela ética e moral apresentada, é dessas pessoas que precisamos nas assembléias, Já tem 10 votos aqui em casa.

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  3. Esse juiz deveria ser preso... só isso, Que vergonha! Que é que está acontecendo com esse país? Este caso me causa náuseas!

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  4. Recebido por email em 13/11/2014, de Luci Esteves:

    Parabéns! É preciso dar a maior visibilidade possível a seu comentário.

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  5. Não seria o caso de se fazer um movimento a favor da agente Tamburini?

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  6. Tenho mais de setenta anos.Gostaria de ver pelo menos uma notícia que fosse o oposto desta antes de morrer, mas acho que não vai dar tempo

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  7. O Brasil é conhecido mundialmente como País das impunidades (analise os atos desse Juiz, que tenta provar ser Deus) Como poderemos reverter essas palavras se um magistrado (se diz magistrado) é capaz de um ato insano..

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