quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A Igreja Católica diz agora que não se faz guerra, nem se mata em nome de Deus

No dia 10 deste mês de agosto, durante a oração do Ângelus de meio-dia na Praça de São Pedro, no Vaticano, o papa Francisco -- referindo-se à violência em curso no Iraque -- disse: "Não se pode praticar o ódio em nome de Deus. Não se faz guerra em nome de Deus". Três fatos, pelo menos, chamam a atenção nessa declaração:

● todas as guerras do Oriente Médio têm clara e inequivocamente o componente religioso no seu cerne, estranhando-se pois que o papa se refira apenas à que ocorre no Iraque;


● nesse seu pronunciamento, o papa cita "incluindo os cristãos" -- a presença de cristãos entre as vítimas é a única razão por ter ele citado apenas o conflito do Iraque? Para um papa que se proclama ecumênico, soa péssima e inaceitável a omissão dos demais conflitos em andamento no Oriente Médio (do Isis, envolvendo Iraque, Síria e Líbano, o da Síria de Bashar al-Assad, e o palestino-israelense em Gaza), na Ásia (Afeganistão) e outros, todos em nome explícito ou implícito de Alá e/ou de Jeová; 


● é no mínimo bizarro que o papa diga o que disse, sendo ele o chefe e líder de uma instituição milenar que tem longo e sangrento passado de violência e extermínio em nome de Deus -- basta lembrar a "Santa" Inquisição e as Cruzadas, para citar apenas dois episódios dos mais violentos na história da Igreja Católica. 


A Inquisição e as Cruzadas diferem fortemente no número de vítimas, mas ambas têm em comum um extremo nível de violência e crueldade contra seres humanos, sempre em nome de Deus.


Os tribunais institucionalizados estabelecidos nos séculos 15 e 16 para combater heresias na Igreja Católica latina têm suas origens em conceitos da lei romana que são anteriores à própria Cristandade. Nos primeiros séculos da Era Cristã (dC, depois de Cristo), surgiu ao lado do sistema acusatório da justiça romana um procedimento inquisitorial (do latim inquirere, que significa "inquirir") que permitia aos magistrados investigar crimes mesmo que não lhes fossem apresentadas denúncias formais. A partir daí, o magistrado acumulava as funções de coletor de provas, promotor e juiz. Concorrentemente com a expansão dessa nova prática para investigações tanto civis quanto penais, houve igualmente um crescimento do uso da tortura como método e meio de interrogar e de extrair confissões, em investigações de traição e outros crimes, aplicável tanto a escravos como a cidadãos romanos. 


O processo inquisitorial já existia quando o Império Romano se converteu ao cristianismo no século quatro, e imperadores cristão a partir de Constantino o empregaram para eliminar a heresia. Embora definida em termos de crença religiosa, a heresia era vista em grande monta como uma ameaça à ordem social da cristandade latina. Quando necessário, bispos podiam assumir o papel de magistrados seculares na execução de inquisições. Procedimentos foram codificados e regulamentados com a emissão do Corpus Iuris Civilis (Corpo do Direito Civil) de Justiniano, em 534. Embora fossem raramente usados, eles permaneceram intactos mesmo durante os séculos de invasões e domínio germânicos.


A situação começou a se alterar por volta do final do século 12, depois que o sacro imperador romano Frederico Barbarossa e o papa Alexandre III chegaram a um acordo reconciliando seus respectivos poderes na Paz de Veneza. Em 1184, o papa Lúcio III emitiu o decreto papal Ad Abolendam ("À abolição", ou "Rumo à abolição"), que alguns denominaram de "carta fundadora da inquisição" já que impunha aos bispos um papel ativo em identificar e julgar atividades de heresia em suas jurisdições. A identificação explícita de heresia com traição e seu julgamento de acordo com as normas da lei romana foram formalizados em 1199 pelo papa Inocêncio III. A fundação de ordens religiosas mendicantes, especialmente a dos dominicanos, nas primeiras décadas do século 13 proporcionou o pronto suprimento de inquisidores papais que podiam ser enviados às regiões mais influenciadas pelos hereges. Ações pelo papa Gregório IX nos anos 1230 e os cânones emitidos pelo Concílio de Tarragona em 1242 tiveram o efeito de centralizar aquelas funções e até esclareceram que a heresia era uma ofensa punível com a morte; entretanto, não seria adequado igualar essas atividades da igreja medieval com as inquisições institucionalizadas que surgiram no final do século 15. De fato, o objetivo destas era principalmente evitar o zelo excessivo de bispos que, agindo individualmente, processavam legalmente hereges -- e fazer cumprir procedimentos previstos para serem mais de penitência que punitivos.


As maiores ameaças perceptíveis de heresia residiam no sul da França (Languedoc) [1] e no nordeste da Espanha (Aragão) [2]. Os principais alvos eram os cátaros (também conhecidos como albigenses) -- que, abertamente, condenavam as doutrinas e a autoridade da igreja latina -- e, em menor escala, os valdenses.


Embora se use apenas o termo "inquisição", na realidade houve várias inquisições, com os historiadores dividindo-as principalmente em Inquisição Medieval e Inquisição Espanhola, embora tenha havido inquisições também importantes em Portugal (incluindo Goa) e na Itália. A Inquisição esteve também no Brasil. As inquisições duraram vários séculos, e as estatísticas sobre o número de pessoas mortas, torturadas até a morte ou queimadas vivas por elas são extremamente incertas e divergentes. Durante a atuação da Santa Inquisição em toda a Idade Média, a tortura era um recurso utilizado para extrair confissões dos acusados de pequenos delitos, até crimes mais graves. Diversos métodos de tortura foram desenvolvidos ao longo dos anos. Os métodos de tortura mais agressivos eram reservados àqueles que provavelmente seriam condenados à morte. Para evitar derramamento de sangue, os métodos de tortura preferidos eram os que não provocavam corte ou dilaceramento da carne, por isso queimar e assar eram populares -- o "queimar na estaca" (burning at the stake) veio da lei romana.



O método de "tostar", uma das torturas da Inquisição

A chamada Inquisição Espanhola é tratada à parte por suas características inéditas [2]. Em 1º de novembro de 1478, o papa Sisto IV assinou a bula Exigit sincerae devotionis affectus ("o amor da sincera devoção exige", em tradução livre), criando uma nova Inquisição na Espanha (a Inquisição Medieval já existia em Barcelona desde 1233). Redigida em resposta a petições dos Reis Católicos da Espanha (Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela), essa bula autorizava os reis a nomear três inquisidores para cada uma das cidades ou dioceses dos reinos. Esse poder concedido aos príncipes era um acontecimento inédito, pois até então estava reservada ao papa a nomeação dos inquisidores, cuja jurisdição se sobrepunha à jurisdição tradicional dos bispos em matéria de perseguição das heresias. A bula permitia aos Reis Católicos não apenas a nomeação mas também a revogação e a substituição dos inquisidores. A Inquisição Espanhola foi inicialmente direcionada contra judeus e muçulmanos convertidos ao catolicismo (em Castela, Aragão, Leon e Navarra), que eram suspeitos de retornar às suas próprias religiões, tornando-se assim culpados de apostasia (muito deles haviam se convertido apenas após serem ameaçados de morte se não o fizessem).

Em seis tabelas, a referência [2] lista para o período de 1540 a 1700 um total de 92.518 processos da Inquisição Espanhola, relacionando-os pelo tipos de delitos -- essas tabelas não indicam o número de mortes [a referência menciona apenas que houve "milhares de detenções e centenas de execuções"(pág. 308)]). Essas estatísticas, reconhecidamente, não retratam a visão completa do que ocorreu na Inquisição Espanhola, porque houve perdas substanciais de arquivos por saque pelas tropas de Napoleão em 1806-1812 ou pela população durante a revolução liberal de 1820. 

Entre as vítimas da Inquisição Medieval estavam os Templários, a ordem militar mais poderosa das Cruzadas.



54 templários foram queimados vivos fora de Paris em 1310. Imagem publicada em "The Oxford Illustrated History of The Crusades", de J. Riley-Smith (ed.), (Oxford University Press, Oxford, 2001), pág. 244


As Cruzadas foram uma série de conflitos militares de caráter religioso travadas por grande parte da Europa cristã contra ameaças externas e internas; foram travadas contra os muçulmanoseslavos pagãoscristãos ortodoxos russos e gregosmongóiscátaroshussitasjudeus e inimigos políticos dos papas. Os cruzados tomaram votos e tiveram a indulgência dos pecados passados​​.
As Cruzadas tiveram originalmente o objetivo de recapturar Jerusalém e a Terra Santa do domínio muçulmano e foram inicialmente lançadas em resposta a um apelo do Império Bizantino por ajuda contra a expansão dos turcos seljúcidas na Anatólia. O termo também é usado para descrever campanhas contemporâneas e posteriores realizadas em territórios fora do Levante normalmente contra os pagãos, os hereges e os povos sob a condenação de excomunhão devido a uma mistura de motivos religiosos, econômicos e políticos. As rivalidades entre as potências cristãs e muçulmanas também levaram a alianças entre facções religiosas contra os seus adversários, como a aliança cristã com o Sultanato de Rum durante a Quinta Cruzada.
As Cruzadas tiveram impactos políticos, econômicos e sociais de grande alcance, alguns dos quais duraram até os tempos contemporâneos. Devido a conflitos internos entre os reinos cristãos e as potências políticas, algumas das expedições cruzadas foram desviadas de sua finalidade original, como a Quarta Cruzada, que resultou no saque cristão de Constantinopla e a partição do Império Bizantino entre Veneza e os cruzados.

A Primeira Cruzada iniciou-se em 1096 [3], por determinação do papa Urbano II, e durou até por volta de 1146.  Num relato da Segunda Cruzada (1146-1148), um padre anglo-normando chamado Raul formulou uma teoria geral de homicídio justificado [3]: "Não é cruel aquele que abate o cruel. Aquele que leva os iníquos à morte é um servidor do Senhor, porque eles são os iníquos e há motivos para matá-los". A Terceira Cruzada durou de cerca de 1187 a 1192, com antecedentes porém nos anos 1170. Conclamada pelo papa Inocêncio III em 1998,  a Quarta Cruzada iniciou-se por volta de 1202  e durou até 1212 com o forte estímulo do papa Inocêncio III, que afirmava que o cruzado estava "seguindo o Senhor", seu "serviço a Jesus Cristo" considerado em termos quase litúrgicos como feudal. Era imperativo que todos os cristãos fossem capazes de participar dessa "guerra do Senhor"[3], dizia o papa. Houve ainda as Cruzadas Albigenses (1209-1229) e a Quinta Cruzada (1213-1221) [3].  As cruzadas não declinaram após 1291. Historiadores consideram que entre 1096 e 1291 houve sete grandes cruzadas e numerosas outras menores - entretanto, alguns consideram que a Quinta Cruzada, de Frederico II, compôs-se na realidade de duas cruzadas distintas, o que faria da cruzada lançada em 1270 por Luiz IX a Oitava Cruzada.


No cumprimento de suas missões, as Cruzadas destacaram-se por sua violência contra bens e pessoas, estuprando, tomando propriedades e bens, e exterminando milhares (ou milhões, segundo alguns) de pessoas. As estimativas de vítimas das Cruzadas variam de 1 milhão a 3 milhões de pessoas. No histórico das Cruzadas, a referência [3] lista eventos marcantes que "deixaram um resíduo de ressentimento, angústia, raiva, culpa e orgulho, dependendo de que legado -- se é que algum -- os observadores modernos querem reivindicar para si mesmos":
● os massacres de judeus e palestinos em Jerusalém em 1099;
● o massacre de gregos em Constantinopla em 1204;
● a matança de judeus da Renânia em 1096 ou 1146;
● a matança de judeus ingleses em 1190;
● as derrotas dos cristãos latinos para grandes líderes islâmicos como Saladino e Baibars;
● a expulsão dos conquistadores ocidentais do território continental da Ásia Ocidental em 1291.

Os tempos mudaram, e os atos de violência da Igreja Católica mudaram de escala, natureza e patamar. Persiste a mancha insuportável e imperdoável da prática e da tolerância à pedofilia por padres, bispos e cardeais (ver postagens de 06/3/2013, de 17/2/2013 e de 13/9/2011, entre outras). Na área financeira, a Santa Sé tem também o rabo preso.

O papa Francisco tem tomado atitudes corajosas para remover vários podres da Igreja, mas precisa cercar-se de muita cautela quando critica matanças em nome de Deus, o passado de sua instituição o obriga a isso.

Referências bibliográficas

[1] "Inquisition and Medieval Society -- Power, Discipline & Resistance in Languedoc" -- James B. Given, Cornell University Press, 1997.
[2] "História das Inquisições -- Portugal, Espanha e Itália -- Séculos XV-XIX", Francisco Bethencourt, Companhia das Letras, 2000.
[3] "A Guerra de Deus -- Uma Nova História das Cruzadas" (2 vols.), Christopher Tyerman, Imago, 2010.

Leitura adicional:
[4] "The Templars -- The dramatic History of the Knights Templar, the Most Powerful Military Order of the Crusades", Piers Paul Read, St. Martin's Press (New York), 1999.



Um comentário:

  1. Vasco,

    Perfeita sua exposição.
    As noticias hoje em dia veiculadas na midia são muito rapidas e um acontecimento acaba superando outros. Na verdade o papa Francisco já se manifestou em outras ocasiões contra o conflito Israel x Palestina.

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