quarta-feira, 11 de junho de 2014

O Brasil que os franceses conhecem, e nós também

[Está ainda em cena -- com pelo menos 7 anos de atraso -- a discussão dos prós e contras da realização da Copa. Como disse em postagem anterior, agora é tarde, Inês é morta e temos que fazer desse limão a melhor limonada possível. Sem, evidentemente, deixar de botar o dedo nas inúmeras feridas que esse evento já deixou e irá deixar. Um dos focos dessa discussão é a imagem positiva do Brasil que a Copa poderá gerar para o mundo. O problema é que um mês de oba-oba futebolístico é absolutamente insuficiente para apagar ou melhorar a imagem de país violento e inseguro, com polícia e judiciário deficientes, que há anos passamos para o exterior. Já fiz postagens anteriores sobre isso, como por exemplo em 19/5 e em 15/4 deste ano -- outras postagens poderão ser vistas clicando-se no marcador "Violência", na aba direita do blogue. Traduzo abaixo a reportagem de 09/6 do jornal francês Le Monde, em que mais uma vez se confirma a péssima imagem do Brasil lá fora. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Brasil, mais próspero e sempre mais violento

Nicolas Bourcier (correspondente do Le Monde no Rio) -- Le Monde, 09/6/2014

A estratégia para assegurar sua reeleição era clara. Bastava à presidente Dilma Rousseff destacar os progressos econômicos e sociais realizados pelo país desde a chegada ao poder, em 2003, de seu antecessor e mentor, Luiz Inácio Lula da Silva. Uma campanha calibrada no longo prazo com o Partido dos Trabalhadores como ponta de lança, a Copa do Mundo de Futebol como porta-voz e, como última garantia, algumas cifras adequadas para convencer os economistas mais recalcitrantes.

Na realidade, a crise surgiu nesse meio tempo, as pesquisas pessimistas sobre o estado de espírito dos brasileiros se sucedem e os movimentos sociais que percorrem o país desde 2013 não dão a impressão de ter esgotado sua mensagem, mas o Brasil no todo jamais esteve tão rico desde o fim da ditura em 1985.

O PIB per capita ultrapassou os 12.000 dólares em 2013, um recorde (na França ele atingiu 35.000 dólares). De 35 a 40 milhões de brasileiros deixaram a pobreza e foram engrossar as fileiras da classe média. Apesar das lacunas e das desigualdades do sistema, o Brasil jamais conheceu um nível de educação como hoje. A população universitária dobrou em anos, para chegar a cerca de 7 milhões de estudantes. E a taxa de analfabetismo chegou a menos de 9% para os maiores de 15 anos.

Contudo, eis que o Brasil mais rico e mais educado do que em qualquer outro momento de sua história descobre -- em uma aparente contradição -- que é igualmente mais violento.

Uma em cada dez mortes no mundo ocorre no Brasil

De acordo com os últimos dados disponibilizados e publicados em 27/5 em São Paulo pelo Instituto Sangari, em seu relatório anual "Mapa da violência", o país registrou 56.337 homicídios em 2012 [ver postagem anterior sobre mapeamento da ONU para o mesmo assunto]. Jamais, desde o início da elaboração de dados estatísticos nessa área em 1980, o país conhecera tal hecatombe [mantive aqui o termo do original em francês]. A poucos dias do pontapé inicial do Mundial, no dia 12 [o artigo foi publicado em 09/6] em São Paulo, e no meio deste ano eleitoral que se anuncia mais apertado do que o previsto, esse recorde sinistro cai mal para o governo e a chefe de Estado.

O que está em consideração: o Brasil registra um homicídio para cada dez crimes dessa natureza praticados no mundo.  Dezesseis das cinquenta cidades mais violentas do planeta estão no Brasil. Seis delas -- Fortaleza, Natal, Salvador, Manaus, Recife e Belo Horizonte -- fazem parte das cidades anfitriãs da Copa do Mundo [ver postagem anterior com a lista completa das cidades que hospedarão seleções estrangeiras].

Nenhum outro país supera o Brasil em número de homicídios, nem mesmo a Índia e a China, seis vezes mais populosos. Pior, as cifras obtidas pelo Instituto Sangari junto ao Ministério da Saúde e ao Ministério da Justiça mostram uma elevação constante dos homicídios. Cerca de 600.000 brasileiros foram mortos de forma violenta desde o ano 2000. 

Apesar de todos os anúncios do governo federal e de responsáveis locais, o número de pessoas assassinadas aumentou em 8% de 2011 a 2012. Esse aumento coloca o Brasil com uma taxa de 29 homicídios por 100.000 habitantes, um nível comparável ao da República Democrática do Congo, um país que está em guerra há vinte anos. A título de comparação, a França registra uma taxa 15 vezes menor.

8% dos crimes solucionados

Ao contrário do que se pensa, a maior parte dos crimes não resulta da ação de traficantes ou do crime organizado. Ela decorre de brigas familiares ou de vizinhos, de arruaças provocadas pelo álcool, de uma falcatrua, de uma ofensa sexual ou de uma discriminação. Portanto, a maioria dos agressores conhece suas vítimas.

Essa violência múltipla, suscetível de explodir não importa onde ou em que momento, é uma das causas de um medo difuso que atravessa o país. Uma sensação que aumenta ao longo dos anos, mina a cada dia um pouco mais a confiança nas instituições e inquieta os dirigentes no poder [quando alguém se inquieta com algo, procura eliminar ou minimizar suas causas -- sinceramente, não vejo isso nos nossos dirigentes, à exceção das UPPs do Rio]. Em dezembro de 2013, uma pesquisa feita com 1.800 pessoas revelou que seu primeiro desejo ou pedido para o Natal era o "fim da violência". Hoje, oito em dez brasileiros dizem ter "muito medo" de ser assassinados, segundo o Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. 

Essas estatísticas sobre a criminalidade já provocaram uma viva emoção em plenos preparativos para o Mundial, já marcado por um dispositivo de segurança de dimensões inéditas (170.000 homens hoje).  Os candidatos da oposição reagiram imediatamente. Eduardo Campos, líder do Partido Socialista Brasileiro, disse que doravante colocaria a segurança no centro de sua campanha [logo ele, que vive numa das cidades classificadas como uma das mais violentas do país, precisou de "estatísticas" para se sensibilizar com o problema ...]. Aécio Neves, candidato do partido social-democrata brasileiro e principal rival político de Dilma Rousseff, falou de uma tragédia nacional e denunciou a tolerância excessiva das autoridades federais [o que disse em relação a Eduardo Campos se aplica integralmente a Aécio, já que a capital do Estado que governou é parelha de Recife em matéria de violência].

De fato, a segurança pública no Brasil é da competência dos Estados.  Nesse particular, ela se mostra na maioria das vezes ineficiente e inoperante. Os relatórios de inquéritos são de má qualidade e os dados são pouco confiáveis. Os inquéritos se perdem na profusão de instituições policiais, uma dezena em todo o território nacional. Isso, combinado com as prerrogativas, os ciúmes e a falta de comunicação entre essas instituições (polícia federal, civil, militar, rodoviária, de fronteiras ...), faz com que o índice de solução de homicídios seja no máximo de 8%.  Isto é pouco, quando se sabe que o Brasil investe, segundo o jornal Valor Econômico, cerca de 60 bilhões de reais (cerca de 19,5 bilhões de euros) em segurança, o equivalente a 1,4% de seu PIB. Ou seja, proporcionalmente, o orçamento adotado anualmente na França para isso.

Um "equilíbrio instável" generalizado

O problema dos dirigentes atuais é que essa violência endêmica se estende por toda parte, com uma recrudescência mais acentuada nas cidades médias ou pequenas. A tal ponto, que os especialistas aludem a um "equilíbrio instável" generalizado, quaisquer que sejam a riqueza ou a equação social da região. O Rio Grande do Sul, um dos estados mais prósperos do país, registrou um aumento de 15% de crimes em 2013, e o maior aumento de tráfico de drogas da década.

As ações adotadas em São Paulo e no Rio de Janeiro têm tido efeitos positivos no tocante a homicídios, mas elas têm também mostrado suas limitações. Nas favelas submetidas ao controle de unidades de polícia ditas "pacificadoras", as armas estão seguramente menos visíveis, o número de homicídios está em baixa, mas o tráfico de drogas continua, o desaparecimento de pessoas está em alta e a violência se deslocou para outros bairros.

O exemplo de Alagoas é revelador da impotência das autoridades. Esse estado do Nordeste é beneficiado desde 2012 com todas as atenções do governo federal. Foi escolhido como alvo pelo Ministério da Justiça para seu programa "Brasil Mais Seguro". O ministro José Eduardo Cardozo esteve pessoalmente várias vezes na capital estadual, Maceió (cerca de 80 homicídios por 100.000 habitantes). Em vão. De janeiro a abril deste ano, 800 pessoas foram assassinadas -- esse número foi de 765 no mesmo período de 2013.

"Essas ações pontuais mostram suas limitações. Sem uma reforma estrutural do sistema carcerário, realizada conjuntamente com uma reforma do modelo obsoleto das polícias civil e militar, não resolveremos o problema", afirma Julio Jacobo Waiselfisz, autor do relatório "Mapa da Violência". Até o momento, nenhum dos partidos de governo incluiu um projeto dessa natureza em seu programa. Mesmo o PT, que havia repetidas vezes pressionado pela reforma quando dos debates para a Constituição de 1988, está silencioso. No momento em que o mundo inteiro volta seu olhar para o Brasil, a paisagem social do país permanece ainda tão conturbada.



Um comentário:

  1. É uma vergonha, os políticos só querem se aproveitar da posição para roubarem, e o povo ainda aplaude a PRESIDENTA.. E o novo Decreto que foi anunciado dia 10/6/2014. O que vc acha, teremos uma nova Venezuela...

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