domingo, 8 de junho de 2014

Como "sionismo" virou um palavrão

[O jornal israelense Haaretz ( "País", em hebraico), que se define como o jornal líder da imprensa mundial em inglês na Internet para notícias e análises online sobre Israel e o Oriente Médio, é um jornal de esquerda extremamente crítico sobre o governo e o país nos cenários doméstico e internacional. O artigo traduzido a seguir -- publicado em 05/5 -- é de autoria de Uzi Baram, um ex-político judeu que foi membro do parlamento de Israel, o Knesset ("assembleia", em hebraico), e foi ministro de Turismo e de Assuntos Internos de seu país. O dia 06 de maio é o Dia da Independência de Israel e, pela tradição judaica, começa a ser celebrado no por do sol da véspera, 05 de maio. O país comemora 66 anos de independência. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

Como "Sionismo" se tornou um palavrão

Uzi Baram -- Haaretz, 05/5/2014

A combinação draconiana de religiosidade imperialista e nacionalismo extremista arrisca transformar Israel em um estado racista, o que não é motivo de celebração no Dia da Independência.

Recentemente li um artigo execrando o fato de, em todos os suplementos jornalísticos sobre o Dia da Independência, não se abordar o aliyah como um valor supremo e um dever nacional ["aliyah" é a imigração de judeus da diáspora para a Palestina e Israel -- também definido como "progredir rumo a Israel", é um dos dogmas básicos do sionismo, que é um movimento político e filosófico que defende o direito à autodeterminação do povo judeu e a existência de um Estado nacional judaico independente e soberano no território onde historicamente existiu o antigo Reino de Israel (Eretz Israel)]. Eu poderia facilmente ter seguido adiante, mas algo nesse argumento me incomodava e comecei a analisar as transições que fiz nos últimos 20 anos.

No início de minha passagem pelo Knesset, atuei como presidente do Comitê sobre Imigração e Absorção. Lidei com refuseniks [termo oficioso para cidadãos tipicamente mas não exclusivamente judeus soviéticos, aos quais foi negado o direito de emigrar da União Soviética e de outros países do bloco oriental] e fiz discursos em Israel e no exterior sobre aliyah e Sionismo. Talvez fosse minha educação em minha casa em Jerusalém, na escola e no movimento juvenil que me fizesse adotar uma postura sionista clássica. Sem mencionar que eu ainda era uma pomba [pacifista] política pura, desprovido de nuances.

Hoje, a palavra "sionismo" só sai de minha boca em resposta a uma pergunta direta. Mas, persisti em minha autoanálise e percebi que não é apenas a palavra "sionismo".  Mesmo uma frase comumente aceita como "a pátria nacional judia" me deixa desconfortável hoje em dia. Anos atrás, penduraria uma bandeira israelense em minha sacada inebriado por um sentimento de algo realmente imperativo. E eu era um participante muito estudioso das cerimônias de acender tochas no monte Herzl no Dia da Independência. 

Minha rebelião contra os símbolos nacionais não aconteceu assim de repente, ou por uma decisão consciente. Muito pelo contrário, resultou de um processo gradual e em andamento.

Obviamente, eu mudei. Fiquei cínico e mais crítico em relação à retórica arengada por nossos líderes. Mas, estimulado pelo sentimento de que muitos outros haviam vivenciado uma metamorfose semelhante, continuei a refletir sobre isso e suas implicações.

Tão logo Sionismo se tornou uma figura de estilo/retórica do movimento direitista dos colonizadores [defensores e/ou participantes dos polêmicos assentamentos judeus na Palestina], tão logo desapropriação e ocupação receberam um selo sionista de aprovação, passei a horrorizar-me com o termo e com as implicações que carrega.

Isso não é algo pequeno. Termos como "judaísmo" e "pátria nacional" têm feito parte da linguagem dos líderes do movimento trabalhista por gerações, e algo traumático precisa ter acontecido para que um sionista como eu chegasse a esse tipo de sentimento. Quando o congressista Yariv Levin (do partido Likud) [likud = união, em hebraico -- o Likud é um partido conservador de direita de Israel] e seus partidários dizem que é necessária uma legislação para priorizar o judeu sobre o democrático, sinto que o judaísmo está oprimindo um valor que, para mim, é igualmente importante -- a democracia -- e sei quais são realmente as intenções secretas dos defensores dessa ideia.  Seu judaísmo é um judaísmo imperialista, que desdenha da minoria árabe que vive em Israel. E Avigdor Lieberman [ministro das Relações Exteriores de Israel], que não tem um uma motivação ou um background judaico-religioso, aberta e descaradamente dá seu apoio a isso.

Minha atitude está mudando não apenas em relação ao judaísmo e ao sionismo, mas também em relação ao Estado de Israel. Este é o meu país, e nada pode abalar isto. Mas, percebendo que Israel, como representado pelo governo, não quer genuinamente chegar à paz com o mundo árabe, decaiu meu respeito pelo governo e pelos tomadores de decisão, que mudaram a imagem de um país em busca da paz para a de um país coberto de medos, como retratado por nossos principais porta-vozes. 

Admito que acho que o crescente poder da religião e dos religiosos é uma causa para consternação. O sionismo surgiu de uma luta contra a ultra-ortodoxia e os "regimes de separação". Os primeiros pioneiros viram a si mesmos como sionistas e judeus lutando por estabelecer uma entidade nacional na Terra de Israel -- eles não viram a religião como um fator importante, e deram preferência a valores universais.

É verdade que a composição da população e a atitude tradicional dos judeus mizrahi (judeus de descendência do Oriente Médio) deram um impulso à religiosidade de Israel, e como um democrata tenho que começar a aceitar e lidar com a maneira como a sociedade mudou no fronte religioso. Mas, a combinação draconiana de religiosidade imperialista com nacionalismo extremista significa que Israel é passível de caminhar para um racismo severo, ao qual alguns rabinos sempre darão seu selo de aprovação. 

Não é de admirar que eu sinta essa regressão em relação aos principais símbolos nacionais. A interpretação que lhes está sendo dada me contraria e transtorna profundamente, e não é algo que eu possa simplesmente aceitar.



Uzi Baram - (Foto: Haaretz)


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