domingo, 3 de novembro de 2013

O legado radioativo nos EUA

[Em sua edição de 31/10, o Wall Street Journal publicou uma reportagem de duas páginas -- de autoria de John R. Emshwiller e Jeremy Singer-Vine --  sobre a contaminação radioativa ainda existente em inúmeros locais dos EUA como resultado do programa nuclear americano. O texto só está disponível para quem é assinante ou, como eu, tem a edição impressa do jornal, e é o resultado de um ano de pesquisa de seus autores sobre o destino de centenas de locais de produção e pesquisa na área nuclear nos EUA durante o período da Guerra Fria.  Tentei condensá-lo na tradução abaixo. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]

O cientista Glenn Seaborg descobriu o plutônio em um prédio da Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde resíduos radioativos permaneceram durante décadas. Autoridades federais dizem que adotaram medidas adequadas para proteção da saúde pública. - (Foto: Universidade da Califórnia, Berkeley, Lawrence Berkeley National Laboratory - Fonte: WSJ/Google).

Foi uma descoberta que contribuiu para o início da era nuclear. Na véspera da entrada dos EUA na Segunda Grande Guerra, cientistas isolaram plutônio em uma pequena sala do Pavilhão Gilman da Universidade da Califórnia em Berkeley. Para garantir que o momento não fosse esquecido, a sala 307 foi transformada em Marco Histórico Nacional. 

Como se viu depois, havia muito mais para lembrar o feito. A pesquisa deixou resíduos radioativos que forçaram a universidade a remover toda uma sala adjacente à 307 em 1957, de acordo com documentos da própria instituição. Um quarto de século depois, enquanto professores e alunos ainda usavam o prédio, a universidade descobriu que dezenas de outras salas e alguns corredores estavam contaminados. A escola descontaminou esses ambientes também -- até descobrir este ano pequenas quantidades de resíduo radioativo em uma sala de estudos.

Carolyn Mac Kenzie, a responsável por segurança radioativa da universidade, diz que qualquer grau de exposição atual está "bem abaixo" dos limites federais de segurança. Ainda assim, ela diz que antes da limpeza dos anos 1980 administradores e alunos da instituição podem ter respirado níveis prejudiciais de radioatividade. "Nunca saberemos", diz ela.

A contaminação em Berkeley é parte do legado de um dos mais importantes empreendimentos científicos e industriais na história dos EUA. Durante o processo de evolução da Guerra Fria, o governo federal recorreu ao setor privado para ajudá-lo a desenvolver e produzir armas nucleares e e outras formas de energia atômica. Centenas de empresas e milhares de operários inexperientes na área foram envolvidos. Mas, ao mesmo tempo em que isso ajudou a defender um país, esse esforço enorme deixou atrás de si um igualmente enorme -- mas raramente divulgado -- trabalho de descontaminação que envolve todo o país.

Existem resíduos provenientes de processamentos rotineiros e também do mau manuseio de materiais nucleares em quase trinta estados. Alguns permanecem em parques públicos, alguns próximos a escolas, e alguns em paredes, pisos e tetos de edifícios comerciais. Foi detetada contaminação em trilhas de caminhadas próximas de bairros residenciais, em lotes urbanos vazios e em água do subsolo.  As autoridades federais dizem que tomaram todas as medidas para proteção da saúde pública, e que esses locais não representam uma ameaça para ninguém que viva ou trabalhe em suas proximidades.  Embora algumas pesquisas tenham gerado preocupações, não há evidência conclusiva vinculando aqueles locais a quaisquer problemas de saúde pública. Em geral, estudos não apontaram a relação exata entre exposição a radiação de baixo nível e questões médicas tais como câncer.  

Mas, uma investigação pelo Wall Street Journal (WSJ) levantou outras questões sobre o expressivo programa estabelecido pelo governo para lidar com um dos processos de limpeza mais demorados e caros do país.  Entre as conclusões do jornal tem-se: - i) falta de documentação suficiente pelo governo sobre dezenas de cidades para decidir se uma limpeza é necessária ou não; - ii) o governo não tem os endereços de dezenas de  instalações, e reconhece que nem mesmo sabe em que estado havia a existência de instalação para tratamento de urânio; - iii) mais de 20 cidades inicialmente declaradas como seguras pelo governo federal solicitaram limpezas adicionais, em alguns casos mais de uma vez.

"O que temos aprendido do programa nuclear é que a gente fica surpreso quando não ocorrem surpresas", diz Roberto Alvarez, um ex-alto funcionário do Departamento de Energia durante o governo Clinton.

A variada e volumosa documentação examinada pelo WSJ e coletada pelo governo cobre mais de 500 locais.  Registros do governo mostram que uma grande maioria desses locais -- incluindo fábricas, centros de pesquisas e outras instalações -- lidou com material radioativo. Até agora, o governo considerou cerca de 130 locais preocupantes o suficiente para exigir uma limpeza e diz que concluiu o trabalho em 90 deles. Custo total projetado: US$ 350 bilhões. 

De acordo com a base de dados montada pelo WSJ, mais de 4  milhões de americanos vivem num raio de menos de 1 milha (1,6 km) de aproximadamente 300 locais que o jornal pôde identificar. Cerca de 1 milhão vive a menos de 1 km desse tipo de local. Cerca de 260 escolas públicas estão também a menos de 1 km de um local desse tipo, assim como 600 parques públicos.  Além disso, a maioria dos atuais donos ou ocupantes dessas instalações desconhecia o passado desses locais.

No local de um grupo de prédios do bloco 500 da Rua 20 Oeste em Manhattan (Nova Iorque), os registros do governo federal mostram que nos anos 1940 o Projeto Manhattan -- o esforço de pesquisa e desenvolvimento que gerou a primeira bomba atômica -- estocou cerca de 136 toneladas de produtos de urânio em instalações que funcionavam como armazéns na época.  Neste caso, os inspetores federais encontraram em 1989 níveis de contaminação radioativa até 38 vezes maiores do que os permitidos em partes das estruturas, de acordo com um relatório de 1995 do Departamento de Energia. Depois de uma limpeza rigorosa, o governo declarou os prédios liberados para "uso irrestrito".

A determinação dos riscos reais decorrentes de radiação está longe de ser uma ciência exata -- muito disso se baseia em estudos de longo prazo sobre a saúde dos sobreviventes da Segunda Grande Guerra no Japão [há também um sério e longo acompanhamento médico dos sobreviventes do desastre nuclear de Chernobil, na Ucrânia, em 26/4/1986, omitido pelos autores]. O conceito científico atual considera que mesmo a menor das doses de radiação adicional aumenta ligeiramente o risco de uma pessoa ter câncer, com o perigo aumentando com a dose. Geralmente, os níveis relativamente baixos de radiação nos locais nucleares mais antigos não são vistos como um perigo a curto prazo. Toda exposição ocorrerá no solo, no ar e na água do subsolo. Richard Muller, professor de física na Universidade da Califórnia, Berkeley, disse que os limites de exposição do governo estão "geralmente tão dentro da zona de segurança, que ninguém deveria preocupar-se com eles".

Os EUA entraram na era atômica nos anos 1940, com a decisão do governo de Franklin Roosevelt de avançar com o desenvolvimento de uma bomba nuclear pouco antes do ataque de Pearl Harbor. Pressionando por urgência, os americanos receavam que a Alemanha nazista estivesse já bem avançada no desenvolvimento de sua própria bomba. 

Há um local em Staten Island (Nova Iorque), agora sob consideração para sofrer uma limpeza, que foi depósito para mais de 1.000 toneladas métricas de minério de urânio extremamente radioativo originário do Congo Belga, que um executivo europeu exportou para os EUA em 1940 para mantê-lo longe dos nazistas. Um relatório federal de 2012 calculou que a exposição potencial a radiação em um canto relativamente remoto e sem uso do local de armazenamento pode ser de cerca de 10 vezes os padrões vigentes. 

Restos do Projeto Manhattan estão enterrados em duas clareiras nas terras de parques intensamente arborizados  no Condado de Cook, Illinois. Durante a Segunda Grande Guerra, o primeiro reator nuclear do mundo -- que entrou em operação na Universidade de Chicago -- foi removido para lá. Na década seguinte, um complexo de 35 prédios, incluindo um segundo reator, foi construído à volta dele. O local foi desmontado pelo governo nos anos 1950. Partes dos dois reatores foram enterradas em um buraco de 30 m de diâmetro e 12 m de profundidade, que foi depois coberto de terra e urbanizado segundo um documento do Departamento de Energia. Este "Local A" está a menos de meio quilômetro do "Local M", um lugar de cerca de meio hectare de área em que estão enterrados materiais contaminados constituídos de entulhos de prédios, equipamentos e vestuários. 

Ao longo dos anos, foi constatada a presença de trítio radioativo em águas do subsolo, inclusive em lugar de piqueniques nas vizinhanças. Autoridades que monitoraram essa ocorrência disseram que o trítio não representava perigo para a saúde. Em 1990, operários estaduais encontraram restos de material contaminados com urânio, incluindo peças metálicas, restos de concreto, pontas de canos  enterrados e níveis elevados de radiação no "Local A", o que deflagrou uma operação de limpeza pelo governo. A erosão provocada por ciclistas circulando sobre o "Local M" permanece sendo um tema de preocupação, segundo um relatório de 2012 do Departamento deEnergia.

O caráter de urgência e confidencialidade do Projeto Manhattan -- executado durante o confronto da Guerra Fria contra a União Soviética -- "fez com que fosse possível não levar em conta reclamações que as indústrias enfrentariam, relativas  a questões de poluição e saúde", disse John Applegate, um professor de legislação ambiental na Universidade de Indiana que atuou num comitê de assessoria sobre descontaminação no governo Clinton. 
Nos anos 1980, um clamor público começou a surgir com relação às tais questões de poluição e saúde e um ponto crucial para isso surgiu na pequena cidade de Fernald em Ohio, onde um grande complexo federal processava urânio para uso em armas. Reclamações de operários sobre condições inseguras na fábrica,  associadas com contaminação radioativa em poços de água potável vizinhos atraíram a atenção do país. 

Joseph Fitgzgerald, um ex-funcionário sênior do Departamento de Energia, percorreu Fernald em 1985.  "Toda a fábrica estava contaminada. Havia montes de urânio sobre o solo", ele se lembra. No final, Fernald passou por uma limpeza de US$ 4,4 bilhões provocada em parte pela entusiasmada intervenção do então senador John Glenn, que se tornou um declarado defensor da eliminação da contaminação de armas em todo o país. Em uma entrevista recente, o ex-senador disse ter chegado à conclusão de que Fernald havia sido "apenas a ponta do iceberg".  Hoje, mesmo os críticos da energia nuclear dizem que Fernald está entre os mais bem sucedidos casos de descontaminação no país.

Em 1989, o Departamento de Energia concordou em pagar mais US$ 70 milhões para por fim a uma ação judicial impetrada por residentes próximos da fábrica, que alegaram que as instalações lhes haviam causado estresse emocional e reduzido o valor de suas propriedades.  O departamento não reconheceu nenhuma prova ou evidência de efeitos nocivos, mas o acordo de fato proveu recursos para um monitoramento de longo prazo por pesquisadores da Universidade de Cincinnatti e por um centro médico local. No ano passado, esses monitores relataram "uma taxa mais alta que a média" de casos de lúpus entre os moradores que viviam próximo à antiga fábrica e disseram que era necessário investigar mais o caso. 

O trabalho relacionado com armamento no Pavilhão Gilman da Universidade de Berkeley gerou problemas de contaminação desde seu início, de acordo com documentos obtidos através de legislação sobre acesso público a informações. Um relatório universitário de 1957 informa que a contaminação na sala 309, vizinha à 307 onde o plutônio foi descoberto, era tão forte que "tetos, paredes, piso e bancadas de laboratórios foram cortados em pequenos pedaços e selados com tambores de fibra de madeira" por operários que usavam "roupas de proteção completas, incluindo máscaras de respiração".  Mais de 17 m³ de material foram descartados como "lixo radioativo".

Investigações posteriores encontraram mais contaminação "num total de  12 salas ao longo de todos os andares do prédio e em corredores", de acordo com um relatório de 1983. Outro relatório dizia que o prédio tinha 40 áreas de contaminação. A universidade cobriu a área contaminada de diversas maneiras, inclusive com ladrilhos, o que "reduziu a taxa de contaminação para valores abaixo dos limites de detecção", afirmou o relatório universitário de 1983, acrescentando que as autoridades  acreditavam que os ocupantes das instalações não tivessem sido afetadas por exposições anteriores.  Um relatório de 1991 acrescentou que "não é viável remover toda a contaminação, a menos que todos os equipamentos e mobiliários sejam removidos e a parte interna do prédio seja destruída".

Ainda assim, problemas aparecem. Ao colocar um novo telhado no Pavilhão Gilman este ano, funcionários descobriram alguma contaminação em uma sala de estudos no terceiro andar. Eles retiraram temporariamente dali três alunos de graduação de química nuclear e lacraram parte da sala, antes de reabrir o resto. Embora as doses de contaminação potenciais fossem pequenas, disse Carolyn Mac Kenzie, "você simplesmente não expõe pessoas desnecessariamente".

Locais relacionados a atividade nuclear nos EUA, identificados por estados, segundo análise do WSJ a partir de registros do Departamento de Energia e do Instituto Nacional para a Saúde e a Segurança Ocupacionais. - (Ilustração: WSJ). 




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