quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Kissinger quer que Israel saiba que foi salvo pelos EUA na guerra de 1973

[A reportagem traduzida compactamente abaixo foi publicada em 02/11 na íntegra no jornal israelense Haaretz ("O País", em hebraico), considerado de tendência esquerdista. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade.]


Henry Kissinger: "Eu conhecia Rabin e Golda. Ele tinham uma tarefa terrível e é fácil, anos depois, criticá-los fortemente dizendo que poderiam ter agido melhor". - Foto: Amit Goren & Adam Vardy, "The Avoidable War" ("A Guerra Evitável"), Amit Goren Productions/Fonte: Haaretz).


Henry A. Kissinger, agora com 90 anos e fazendo de tudo menos aposentar-se, sentou-se nos escritórios da Kissinger Associates em Manhattan numa manhã do verão de 2012 enfrentando câmaras e se assegurando de que sua versão da história saísse exatamente correta. Relutantemente, ele estava se submetendo a uma rara entrevista para um documentário israelense de televisão chamado "A Guerra Evitável", sobre o 40° aniversário da Guerra do Yom Kippur [A Guerra do Dia do Perdão, assim chamado porque se iniciou naquele que é um dos mais importantes dias do calendário judaico]. Se a guerra podia ter sido evitada ou não é passível de discussão, mas o grande mestre da diplomacia global e talvez seu melhor praticante na segunda metade do século 20 tentou evitar a entrevista. Seus amigos disseram que ele não queria nem rever velhas feridas oriundas de seu relacionamento com a comunidade judaico-americana, nem rediscutir velhas alegações e contraalegações relativas ao crédito a ser dado à ponte aérea americana que ajudou Israel a retomar sua postura militar após reveses iniciais na guerra. Deixemos o passado para trás -- de fato, ele está agora até em termos amistosos com a pessoa cujos subordinados tentaram retardar a ponte aérea: o então Secretário de Defesa, James Schlesinger.



Mesmo quando finalmente cedeu, e reservou uma sala para a filmagem da entrevista, Kissinger alertou seu entrevistador -- essencialmente lendo para ele sua versão melhorada de seus direitos de Miranda [também chamados de "advertência de Miranda", referem-se à obrigatoriedade de um cidadão americano ser alertado sobre seus direitos antes de sofrer qualquer interrogatório ou coação legal] -- de que qualquer coisa que ele, Kissinger, dissesse poderia ser depois usado contra o entrevistador caso este ousasse alterar o sentido de qualquer observação/comentário do entrevistado, encurtando ou editando suas citações.   

"Em 9 de 10 casos", disse Kissinger, "tive experiências muito ruins com entrevistas".  Ao abordar isso, ele estabeleceu uma condição muito parecida com a que os pais usam para dizer a seus filhos à mesa de refeição -- e que foi dita em refeitórios do exército -- em épocas mais frugais: escolha o que quiser, mas coma tudo o que escolher. Filme tudo o que quiser, disse ele, mas você tem que comprometer-se por escrito a usar minhas respostas na íntegra, caso contrário nada poderá ser usado.

Assumindo o controle da conversa, como se ainda estivesse negociando com os chineses, os vietnamitas ou com aqueles cabeçudos árabes e israelenses, ele comenta ironicamente, referindo-se a "A Guerra Evitável": "É importante fazer algo objetivo mas, o que quer que você faça, deixe espaço para que seu governo aja de boa fé, no interesse dos israelenses, em várias circunstâncias". [Quem ler o livro "About Face; A History of America's Curious Relationship With China, From Nixon to Clinton" ("Meia-volta: Uma História da Curiosa Relação da América com a China, de Nixon a Clinton", de James H. Mann (Ed. Alfred A. Knopf, 1999), considerado um clássico no assunto, verá que Kissinger et caterva levaram um banho dos chineses nas negociações entre eles, desmentindo essa fama de bam-bam-bam invencível de Kissinger em política externa. O "meia-volta" do título refere-se ao fato de que tanto Nixon quanto Clinton tiveram que rever em 180° suas posições oficiais como candidatos em relação à China, por erros de avaliação de ambos em relação aos chineses]. Kissinger admite que décadas atrás, especialmente durante os choques sobre o que a administração Geral Ford chamava de sua "reavaliação" da relação dos EUA com Israel, "pode-se perfeitamente dizer que fomos duros com Israel", mas sem perder a autoconfiança e a franqueza ele lembra àqueles que preferem esquecer, que "houve esse pequeno detalhe de que salvamos vocês em 1973, certo?".

(...) 

"Preocupação crescente"

Devido a problemas de espaço, o que segue é apenas uma lista parcial dos pontos abordados em "A Guerra Evitável" por um dos dois estrategistas de categoria mundial envolvidos na crise de 1973 (o outro sendo o presidente do Egito Anwar Sadat) -- mas, com as respostas virtualmente intactas por receio da cólera de Kissinger.

Foi naquele tumultuado ano de 1973, entre o início da retirada dos EUA do Vietnã e a ladeira escorregadia de Watergate, que a administração Nixon decidiu lançar uma iniciativa de paz entre Egito e Israel, mas somente depois que ocorresse a eleição para o Knesset ["assembleia" em hebraico -- o Parlamento de Israel] prevista para 30 de outubro em Israel.

"Para aqueles de nós que conduziam a política, tínhamos um problema vietnamita, um desafio chinês, uma guerra fria com a Rússia e, por cima disso tudo, uma guerra árabe-israelense no momento em que o presidente se via no início de um processo de impeachment", diz Kissinger.

"A crise de Watergate impôs restrições à capacidade de manobra do presidente. Mas, estávamos provavelmente afetados também pela percepção de que era melhor esperar com a iniciativa de paz até após a eleição em Israel (originalmente prevista para outubro de 1973, mas adiada para 31 de dezembro por causa da guerra). Tomamos medidas preliminares direcionadas para a iniciativa de paz em duas reuniões com o principal responsável pela segurança nacional do Egito (Hafez Ismail). É crucial lembrar que não tínhamos relações diplomáticas completas ou contato com alguns países árabes".

A guerra poderia ter sido evitada se Israel houvesse concordado em retirar-se para todas as fronteiras de 1976, como demandado por Sadat? 

"Não tínhamos como saber se essa era uma proposta sincera e honesta. Não tínhamos indicação de que era compartilhada pela Síria, e estávamos seguros de que Israel não levaria isso em consideração nas circunstâncias então existentes, com um efetivo militar soviético ao longo do Canal de Suez e uma invasão da Jordânia pela Síria. Assim, isso era apenas uma proposta genérica que pretendíamos transformar numa contraproposta de buscar uma abordagem por etapas, no curso da qual a definição de retirada estava ainda aberta para discussão". 

Nixon esperava também pela posse de Kissinger como seu secretário de estado, em sucessão a William Rogers que, juntamente com funcionários de carreira do Departamento de Estado, não tinha a confiança de Golda Meir?

"Sempre que Nixon queria agir nesse campo ele transferia para mim essa atribuição, qualquer que fosse a posição burocrática formal existente. A preferência por lidar diretamente com a Casa Branca, deixando de lado o Departamento de Estado, não é raro da parte de Israel. Isso é algo que ocorreu com diversas administrações, e não teve nada a ver com as decisões que Nixon tomou".

As ameaças de Sadat não foram devidamente levadas a sério?

"Sadat havia feito muitas ameaças durante um extenso período de tempo. A nossa opinião era de que ele não tinha capacidade militar para levar isso a cabo. Essa era também a opinião do serviço de inteligência de Israel, repetidamente passada para nós.  E nós tínhamos um plano firme para iniciar as negociações de paz, que conduzimos através do principal assessor de segurança nacional do Egito, e os israelenses tinham pleno conhecimento disso. Então, se o timing da iniciativa de paz poderia ter sido antecipado -- essa é uma das grandes perguntas que os jornalistas podem fazer 40 anos mais tarde".

Vários dias depois que Kissinger acrescentou o portfólio do Departamento de Estado às suas funções no Conselho de Segurança Nacional, e justo quando a Assembleia Geral da ONU -- da qual teria que participar -- estava por lidar com o Oriente Médio, ele se alarmou com atividades inusitadas próximas às fronteiras. 

"Na semana em que começamos a investigar a situação tática (no final de setembro e início de outubro), recebi um relatório de inteligência que falava da concentração de forças egípcias e sírias ao longo das linhas divisórias. Era natural indagar da CIA e do Mossad quais eram suas avaliações sobre a situação. Na opinião de ambos tratava-se de manobras normais, e portanto não representavam um risco adicional de guerra. Solicitei que novas avaliações fossem feitas ou que se fizesse isso a cada dois dias, para assegurar que não fôssemos pegos de surpresa".

"Na sexta-feira, 5 de outubro, fomos informados de uma preocupação crescente -- mas não de qualquer novo perigo específico -- mas de uma preocupação crescente de que aquelas mobilizações que havíamos notado poderiam ser algo mais sério. E fomos solicitados a transmitir para o lado árabe que Israel não tinha intenção de lançar um ataque preventivo, e que portanto qualquer manobra militar de que estivessem cogitando não deveria ser efetuada com base no receio de um ataque israelense -- e assim fizemos. Fui informado às 6:30 da manhã de sábado, horário de Israel. Fui acordado pelo secretário-assistente de Estado Joe Sisco, que disse que uma guerra era iminente. Estávamos em Nova Iorque para a Assembleia Geral [da ONU], e ele me acordou e me disse que se eu começasse a agir imediatamente provavelmente conseguiria ainda evitar a deflagração do conflito".

As ligações urgentes de Kissinger para os soviéticos e os egípcios não deram resultado. Kissinger concorda com a opinião de Golda Meir de que uma tentativa israelense de prevenção nesse estágio avançado da situação não compensaria.

"A decisão israelense, tomada em seu próprio arbítrio e não por solicitação nossa, de não recorrer a uma medida preventiva teria sido sábia e sensata, com o ataque árabe a apenas poucas horas de distância? A primeira questão então é saber quão eficaz teria sido um ataque preventivo naquele momento, no Dia do Perdão, sem uma força aérea israelense israelense mobilizada e contra o sistema soviético de defesa com mísseis ao longo do canal, sistema este que depois na guerra mostrou-se razoavelmente eficiente até que o canal fosse atravessado. Então, posso ver como tendo sido uma decisão sensata de Golda, ponderando o risco que tinha de que Israel fosse visto como o agressor contra a real opção que tinha e contra a capacidade real ofensiva de Israel, no Dia do Perdão, de lançar um ataque significativo no espaço de tempo muito limitado que lhe restava".

O dilema de Dimona

Um dos piores momentos de Israel ocorreu em 9 de outubro, quando Golda solicitou desesperadamente a Kissinger via Simcha Dinitz [político e estadista israelense, que foi embaixador de Israel em Washington de 1973 a 1979] para providenciar  uma reunião breve e secreta dela com Nixon: "Minha forte recomendação foi de que não se permitisse ocorrer a situação de um primeiro-ministro israelense deixando o país no meio de uma batalha e vindo à América com um pedido de ajuda, já que isso seria interpretado pelo outro lado como um sinal de enorme fraqueza".

O pedido de Meir trouxe à América a urgência de satisfazer a demanda de Israel por reposição das pesadas perdas de armamento no campo de batalha. Quanto à alegada capacidade nuclear de Israel, Kissinger se recusa a falar sobre o acordo de setembro de 1969 com o qual Golda -- na sua presença -- teria confrontado Nixon fortemente, referindo-se a uma promessa americana de ignorar o que quer que estivesse sendo feito em Dimona, em troca de um pedido para que Israel não desse qualquer visibilidade a esses produtos. Kissinger se refere a relatórios dando conta de que alguns israelenses consideraram que houve uma quebra desse entendimento nessa hora de perigo [Dimona é uma cidade no deserto de Negev, considerada o centro do poder nuclear israelense porque em suas vizinhanças está localizado o Centro de Pesquisas Nucleares do Negev].

"Teriam os israelenses ficado tão desesperados no 9 de outubro, que ameaçaram usar ou tornar visíveis armas extremas? Se o fizeram, isso nunca veio a mim e nunca recebi, nem Nixon recebeu, e suponho que ninguém em nosso governo recebeu, qualquer indicação de que isso estava sendo contemplado ou mostrado, e seríamos fortemente contrários a isso [é muito difícil acreditar num Kissinger fazendo o papel de quem nada sabia ou soube nesse momento, ainda mais sendo ele de origem judaica]. Mas, essa questão nunca surgiu e nunca foi discutida conosco. Tal demonstração de poder não teria sido contrária a entendimentos que Israel tinha com os EUA? Isso certamente teria sido contrário ao que Israel entendia como sendo nossa visão sobre o assunto.  Mas, o assunto nunca surgiu e nunca foi discutido, direta ou indiretamente".

No dia 12 de outubro, contra a recomendação de Kissinger, Israel basicamente admitiu a derrota, reverteu sua oposição de uma semana contra um cessar-fogo e solicitou que ele fosse implementado. Kissinger queria um acordo pós-guerra, mas não um alcançado ao preço de uma óbvia posição de fraqueza israelense.  O Egito estava entrincheirado numa faixa ao longo da margem leste do Canal de Suez, no Sinai. Israel estava ainda por lançar uma contraofensiva lá. Teria sido um inequívoco gol do Egito, se Sadat não tivesse deixado a bola escapar.

Kissinger: "Moderação numa vitória evidente é a coisa mais difícil para um estadista. E ele se tornou confiante demais".

Depois que as forças de defesa israelenses pressionaram para o oeste, atravessando o canal, Kissinger foi rapidamente convocado a Moscou para negociar o contexto político de um cessar-fogo. Para protelar e dar a Israel mais tempo para avançar no Egito, ele queria fazer-se passar por um simples emissário pendente de uma aprovação presidencial mas, periodicamente, Nixon "minava" o secretário de Estado dando-lhe demasiado poder [se essa foi realmente a atitude de Kissinger, especialmente em relação a Moscou, foi uma posição ridícula por querer esconder o óbvio e fazer pouco da inteligência dos russos].

"A maior dificuldade durante toda crise de Watergate era como preservar a credibilidade americana, quando sua autoridade executiva estava sob um ataque incansável. Mas, fomos ajudados pelo fato de que os líderes soviéticos não podiam imaginar o declínio de autoridade dentro de nosso sistema, o que na realidade estava acontecendo. Agora, enquanto eu estava a caminho de Moscou, Nixon enviou uma mensagem ao líder soviético Brezhnev dando-me plena autoridade para resolver todos os assuntos. Talvez Nixon não fizesse isso em circunstâncias normais mas, muito compreensivelmente, ele estava sob uma pressão enorme para demonstrar que estava ativo na condução da diplomacia do país. E tem-se que dar um enorme crédito a Nixon pela força que mostrou em todas as fases daquela crise. Como os registros mostram, essa foi uma das poucas ocasiões em que resisti a receber um poder de decisão adicional e liguei para Washington para reclamar disso". 

Em resumo, temos o Dr. Kissinger sentimental e o Sr. Tomador de Decisões, afiado como uma lâmina de barbear.

"Agora, que lições se pode tirar daquela crise? Bem, deve-se compreender que qualquer coisa que alguém tenha que finalmente fazer deve fazê-la quando tem ainda uma margem para decisão, e deve-se ter uma clara e longa gama de objetivos.  Mas novamente, quero repetir, é um problema quando você tem um país com uma margem de sobrevivência muito estreita. Há algumas experiências/tentativas que você não pode testar. Eu conhecia essa gente toda, conhecia Rabin e Golda. Eles tinham uma tarefa terrível, e é fácil anos depois dizer que poderiam ter feito melhor do que fizeram. É fácil para as pessoas falarem; se você voltar às fronteiras de 1967, elas então têm um país que tem oito milhas de largura [cerca de 13 km] e lhes damos uma paz não especificada, quando uma das partes [Assad] sequer fala com os americanos e a outra [Sadat], por tudo que sabíamos, era um personagem saído da Aída".










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