sexta-feira, 26 de julho de 2013

Consequências do Sr. Mantega

[O texto abaixo é da autoria de Luiz Fernando de Paula e André de Melo Modenesi e foi publicado em 12/7 no jornal Valor Econômico. O título é alusivo ao artigo "The Economic Consequences of Mr Churchill", em que John Maynard Keynes criticou o retorno do Reino Unido ao padrão-ouro em 1925.  Luiz Fernando de Paula é professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB). André de Melo Modenesi é professor adjunto do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor da AKB.]

Consequências do Sr. Mantega

Luiz Fernando de Paula e André de Melo Modenesi -- Valor Econômico, 12/7/2013

Recentemente, verificou-se importante mudança no mix de política econômica, materializada na redução histórica da taxa de juros e na desvalorização da taxa de câmbio. Entretanto, o baixo crescimento do PIB em 2011/12 (média de 1,8% a.a., contra 3,6% em 2001/10) e a perspectiva de um desempenho ruim em 2013 reforçam a necessidade de se aprofundar o debate sobre as causas da desaceleração econômica no Brasil. Para alguns analistas, tal desempenho decorre da adoção de políticas ditas keynesianas. Segundo esta visão, qualquer política ativista e expansionista é keynesiana. A nosso juízo, trata-se de visão reducionista e equivocada.

As políticas keynesianas supõem a inexistência de forças automáticas (a "mão invisível" de Smith) que conduzem a economia ao pleno emprego, ressaltando-se a importância da demanda agregada na determinação do nível de atividade econômica (produto e emprego). Em linhas gerais, tem-se como objetivo criar um ambiente favorável ao investimento produtivo, buscando assegurar elevados níveis de emprego e de renda, bem como a estabilidade de preços - vital para o funcionamento de uma economia monetária que se baseia em uma teia de contratos definidos em termos nominais. Assim, pretende-se estimular os empresários a assumirem riscos adquirindo bens de capital - em busca de lucros compensadores - em detrimento do acúmulo de ativos líquidos. Ou seja, visa-se a estabilidade macroeconômica, algo mais amplo do que a mera estabilidade de preços. Em suma, o governo pode contribuir para reduzir os riscos macroeconômicos - e a incerteza - que permeiam a economia.

A coordenação das políticas macroeconômicas (fiscal, monetária, cambial e políticas de renda) é um elemento fundamental. A coordenação, contudo, é vista de forma diferente da concepção ortodoxa. Segundo a visão convencional, o objetivo primordial da política macroeconômica é a estabilidade de preços - por sua vez, considerada único objetivo a ser alcançado pela política monetária. Já a política fiscal deve ser subordinada à política monetária. Na perspectiva keynesiana, políticas econômicas específicas não devem ser formuladas de forma isolada das demais. Em particular, considera-se que a política fiscal - focada no investimento público, dado seu maior efeito multiplicador de renda e suas externalidades positivas - impacta a atividade econômica, funcionando como instrumento poderoso para estimular a demanda agregada.

A clara e inequívoca sinalização das intenções da política é essencial para estimular os agentes privados a atuarem na direção desejada pelas autoridades econômicas. Ao contrário do que comumente se pensa, Keynes e os economistas keynesianos defendem a transparência e não o segredo como uma condição para o sucesso da política econômica. Uma política sem credibilidade pode encontrar sérias dificuldades em lograr êxito em seus objetivos. Uma coordenação de políticas apropriada aos objetivos almejados, ainda que necessária, não é algo fácil de se alcançar.

Sustentamos que a desaceleração econômica recente no Brasil é, em boa medida, resultado de má coordenação de políticas econômicas e de uma estratégia confusa, que não foi devidamente sinalizada aos agentes econômicos. Utilizando o linguajar médico, alguns remédios, ainda que recomendados (como redução de juros), foram insuficientes para combater a doença; outros, entretanto, foram erroneamente prescritos. Assim, cabe entender por que as políticas anticíclicas foram bem-sucedidas para enfrentar o contágio da crise do Lehman Brothers, mas não evitaram o contágio da crise do euro.

O contágio da crise do Lehman Brothers sobre a economia brasileira, a partir de setembro de 2008, foi muito agudo e rápido: saída de capitais estrangeiros aplicados em bolsa; redução da oferta de crédito externo para bancos e firmas (inclusive exportadoras); aumento das remessas de lucros e dividendos por parte de subsidiárias de empresas multinacionais; retração do mercado de crédito doméstico; e empoçamento de liquidez no mercado interbancário. A vulnerabilidade da economia brasileira agravou-se em função do uso especulativo de derivativos cambiais por parte de algumas empresas exportadoras, que lucravam apostando na continuidade do processo de apreciação cambial.

O governo respondeu com uma grande variedade de instrumentos, incluindo: medidas de reforço à liquidez do setor bancário (redução do compulsório e criação de incentivos para os grandes bancos comprarem as carteiras de créditos de pequenos bancos); linha temporária de crédito às exportações; intervenções do Banco Central (BC) no mercado cambial (venda de US$ 23 bilhões no ultimo trimestre de 2008); estímulo à expansão do crédito por parte dos bancos públicos; redução do imposto sobre produtos industrializados (IPI) para automóveis, eletrodomésticos e produtos de construção; aumento do período de concessão do seguro-desemprego; e criação de um programa de construção de moradia popular ("Minha Casa Minha Vida").

A nota destoante foi a manutenção da taxa de juros elevada pelo BC (gestão Henrique Meirelles) até o inicio de 2009, contrastando com a política fiscal anticíclica e a política creditícia dos bancos públicos. O gráfico 1 mostra a taxa de crescimento do crédito por controle de capital. Destaca-se o papel anticíclico dos bancos públicos (BNDES, Banco do Brasil e CEF) face à desaceleração dos bancos privados.


O governo agiu de forma rápida e coordenada e também sinalizou claramente o objetivo de adotar uma política anticíclica. Contribuiu, assim, para evitar uma deterioração mais drástica das expectativas, logrando êxito na recuperação econômica, a partir de meados de 2009. Em particular, o crescimento da formação bruta de capital fixo e do consumo contribuiu para a rápida recuperação. Em resposta à retomada do crescimento, à restauração da confiança dos agentes e à ampliação do nível de utilização da capacidade instalada da indústria, o investimento cresceu de 17,0% do PIB (primeiro trimestre de 2009) para 20,5%, no terceiro trimestre de 2010. As exportações, por sua vez, foram favorecidas pela forte melhora dos termos de troca, devida principalmente à retomada da economia chinesa - com crescimento de 9,2%, em 2009 - e à recuperação mundial, em 2010.

Cabe destacar que as ações do governo foram favorecidas por decisões tomadas no período anterior: a combinação de redução da dívida externa pública com a politica de acumulação de reservas internacionais resultou em um saldo líquido credor do governo em moeda estrangeira. Assim, a forte desvalorização cambial que se seguiu ao contágio (43%, de setembro a dezembro de 2008) favoreceu, pela primeira vez, as finanças públicas, facilitando o uso de uma política fiscal anticíclica. Por outro lado, as medidas de estímulo ao consumo foram beneficiadas pelo ainda moderado nível de endividamento das famílias - a razão endividamento sobre renda acumulada nos últimos 12 meses estava em 38%, em outubro de 2008.

O governo Dilma Rousseff foi marcado, nos seus dois primeiros anos (2011/12), pela gradual piora no cenário internacional, devida à crise do euro, à fraca recuperação americana e à desaceleração dos países emergentes - a taxa de crescimento médio da economia mundial caiu de 5,1% em 2010 para 3,8% em 2011 e 3,3% em 2012. Do ponto de vista da condução da política econômica, destacam-se mudanças no mix e nos instrumentos de política, com uso de medidas macroprudenciais monetárias e cambiais, forte redução da taxa Selic (de 12,5%, em julho de 2011, para 7,5%, em agosto de 2012) e - após a adoção de uma série de medidas regulatórias sobre os fluxos de capitais, inclusive sobre o mercado de derivativos - uma desvalorização cambial de 25% (entre agosto de 2011 e maio de 2012).

Graças ao bom desempenho fiscal no primeiro semestre de 2011, o Ministério da Fazenda pôde adotar medidas fiscais para estimular o setor industrial, combalido pela forte apreciação do câmbio e pela acirrada competição no mercado externo. O principal instrumento foi a isenção fiscal, incluindo a redução do IPI sobre bens de capital e a desoneração da folha de pagamento de setores intensivos em mão de obra, permitindo a mudança na cobrança da contribuição previdenciária, de 20% sobre o salário por taxas de 1% (ou 2%) sobre os lucros das firmas. No segundo trimestre de 2012, foram adotadas medidas adicionais no âmbito do Plano Brasil Maior, tais como: ampliação da desoneração da folha de pagamento para outros setores; redução do IPI de alguns bens duráveis (automóveis, geladeiras etc.); postergação do recolhimento do PIS/Cofins; e redução da alíquota de IOF sobre operações de crédito a pessoas físicas.

Entretanto, o crescimento econômico em 2011/12 desapontou, ficando abaixo de 2% a.a. (média). O produto industrial caiu 0,4% a.a. (na média do período). Ainda que todos os itens do gasto agregado tenham caído, o mau desempenho da formação bruta de capital fixo foi o que mais contribuiu para a desaceleração.

O fraco desempenho da economia brasileira resultou de um conjunto de fatores externos e domésticos. Embora a situação econômica da zona do euro agora não seja disruptiva, a ameaça de piora da crise afetou a economia brasileira - principalmente pelo canal do comércio exterior, por causa da redução do preço de algumas commodities e da queda geral da demanda externa por produtos manufaturados, semimanufaturado e básicos. Além disso, as expectativas empresariais deterioraram-se drasticamente, em função do risco de ocorrência de um "grande evento" (a derrocada do euro).

No lado doméstico, o produto industrial parou de crescer, em consequência, principalmente, do aumento do coeficiente de importações (valor das importações sobre o valor do produto doméstico do setor industrial), que passou de 17,0% no quarto trimestre de 2009 para mais de 22% no primeiro trimestre de 2012. O quantum da produção industrial estagnou-se, a partir de 2010, enquanto as vendas no comércio varejista continuaram aumentando, abrindo uma "boca de jacaré" entre essas duas tendências (gráfico 2). Ou seja, os estímulos dados à demanda vazaram para o exterior. Consequentemente, a utilização de capacidade instalada da indústria diminuiu, gerando capacidade ociosa, que contribuiu para a desaceleração dos investimentos em 2012- já afetados pela deterioração das expectativas empresariais em face da piora do cenário internacional.


O crescimento do consumo começou a declinar gradualmente, em função da desaceleração da demanda e oferta de crédito bancário, dado o alto nível de endividamento das famílias - que cresceu gradualmente, de 32,5% em janeiro de 2009 para 43,8%, em agosto de 2012 - e o aumento da inadimplência (de 4,5%, em dezembro de 2010 para 5,9%, em meados de 2012). O gráfico 1 mostra a desaceleração do crédito bancário a partir de meados de 2011, puxada pelos bancos privados. O índice de liquidez dos três maiores bancos privados (relação entre disponibilidades mais títulos e total de ativo) cresceu de 11,6%, em junho de 2010, para 21,5%, em junho de 2012 - o que mostra a maior preferência pela liquidez dos bancos privados em momento de maior incerteza.

As exportações declinaram 5,3% em 2012 (em relação a 2011), enquanto as importações diminuíram apenas 1,4%. Assim, o saldo comercial diminuiu 34,8%. De fato, tanto os termos de troca quanto a demanda mundial declinaram, como efeito da desaceleração econômica mundial: os principais parceiros comerciais do Brasil (Europa, China e Argentina) tiveram um crescimento declinante em 2012. As evidências empíricas de vários trabalhos acadêmicos, que procuraram estimar a função exportação para o Brasil, sugerem que o efeito preço (resultante do movimento da taxa de câmbio) é superado largamente pelo efeito renda mundial. Esse resultado ajuda a entender por que a desaceleração econômica mundial em 2012 anulou os efeitos positivos da desvalorização cambial sobre as exportações brasileiras.

Com relação às importações, deve-se considerar que anos seguidos de apreciação da taxa de câmbio (desde 2003) suscitaram um comportamento defensivo das empresas (substituindo bens de capital e insumos por produtos importados), que não se altera imediatamente ao sabor dos acontecimentos - principalmente, se considerarmos que uma desvalorização da ordem de 25% não é suficiente para compensar a forte apreciação cambial acumulada.

Finalmente, a dinâmica dos gastos públicos - incluindo os investimentos públicos - não foi capaz de compensar a desaceleração geral dos outros componentes da demanda. O gráfico 3 mostra a evolução do resultado primário (proporção do PIB) a partir do momento em que cada crise se iniciou. O "timing" e a intensidade da resposta de política fiscal nos dois momentos foram bem diferentes. De fato, a política fiscal anticíclica em 2011/12 foi muito limitada quando comparada ao período anterior. O superávit primário caiu imediatamente após o início da crise do Lehman Brothers. Durante a crise do euro, ocorreu o inverso, sendo que apenas no décimo mês após o início da crise verifica-se uma redução no superávit, de magnitude bem inferior à ocorrida na crise anterior.


Acrescente-se que a composição da expansão fiscal limitou seu efeito anticíclico. Durante a crise do Lehman Brothers, o governo deu mais ênfase às despesas - como o aumento do salário mínimo e transferências sociais; aumento dos investimentos públicos e da Petrobras; e promoção do programa "Minha Casa Minha Vida". Pelo lado das desonerações, algumas ações pontuais e temporárias foram adotadas, tais como redução de impostos para veículos, eletrodomésticos e insumos da construção civil e para operações de crédito. Enquanto a resposta à crise do Lehman Brothers envolveu um conjunto rápido de desonerações fiscais importantes e de expansão de despesas, a resposta à crise do euro ocorreu apenas a partir do segundo semestre de 2012, e enviesada na direção de desonerações fiscais, muitas das quais sem efeito claro sobre a atividade econômica. Os investimentos públicos representaram 1,1% do PIB em 2012, valor equivalente ao de 2011 e menor do que o de 2010. Considerando o impulso fiscal como um todo, é possível concluir que foi muito menor, atrasado e com uma composição que resultou em impacto menor sobre a atividade econômica em 2011/12 (em relação a 2009/10). De fato, a literatura apresenta evidências empíricas de que os multiplicadores fiscais de receita têm efeitos menores sobre a renda agregada do que os multiplicadores das despesas.

O governo brasileiro apostou que a mudança no mix de política econômica (redução da Selic e desvalorização cambial) - a chamada "nova matriz econômica", segundo o ministro Mantega - somada às isenções fiscais seriam suficientes para impulsionar conjuntamente oferta e demanda agregada de bens, resultando em um crescimento econômico mais robusto. Quando ficou claro que não seria o caso (pelos motivos apontados), o governo procurou implementar medidas "ad hoc" para estimular o crescimento, como a extensão da desoneração de folhas de pagamento para mais setores. Tal ação, entretanto, não foi bem coordenada e careceu de consistência.

A adoção de uma política fiscal anticíclica em 2011/12 se justificava face ao baixo desempenho da economia, mas veio atrasada e privilegiando isenções fiscais, em vez de investimentos públicos. Para completar, não foi comunicada aos agentes de forma adequada: o governo prometeu que até o fim do ano cumpriria integralmente a meta de superávit primário, acabando por utilizar artifícios contábeis para alcançar a meta. Melhor seria se já em meados de 2012 revisse realisticamente a meta, quando estava claro que não iria conseguir cumpri-la, justificando tal mudança, como fez em 2009, em função da desaceleração em curso.

Concluindo, entendemos que não houve no governo atual a percepção de que a economia brasileira passava a partir de meados de 2011 por momento distinto do período de contágio da crise do Lehman Brothers. Assim, subestimaram-se os desafios colocados pela conjuntura mais recente e, consequentemente, utilizaram-se instrumentos incompletos ou mesmo inadequados. Isso parece evidenciar uma situação marcada por considerável descoordenação da política econômica, que está longe de poder ser definida como uma política genuinamente keynesiana.











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