sábado, 20 de abril de 2013

Dívida pública e crescimento econômico -- o erro na planilha Excel e a polêmica dos 90%

[O artigo traduzido abaixo foi publicado hoje pela revista The Economist.  O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade. Essa é uma dessas histórias que seria cômica, não fosse seu lado trágico. Simplesmente um parâmetro ampla e intensamente utilizado nos EUA e na União Europeia (UE) para justificar medidas de austeridade pesadíssimas a partir do início de 2010 -- o valor limite de 90% para a relação "dívida pública/PIB" -- é fortemente questionado e, de certa maneira, até ridicularizado, por um erro numa planilha Excel!...]

Nível de endividamento de governo tem importância.  Não honrar a dívida e pânico financeiro são a matéria-prima dos pesadelos dos ministros de Finanças. Empréstimos tomados pelo governo [= dívida pública] podem afastar o investimento privado, arrastando o crescimento para baixo. Mas, ao mesmo tempo, economistas têm se esforçado para especificar quando é que um país precisa se preocupar com sua dívida. Em um artigo de 2010, Carmen Reinhart, hoje professora na Escola Kennedy de Harvard, e Kenneth Rogoff, um economista da Universidade de Harvard, pareciam ter encontrado uma resposta para essa questão. Seu argumento era de que o crescimento do PIB reduz-se ao passo de uma lesma quando o nível da dívida pública excede 90% do PIB. [Ver aqui o artigo citado.]

A figura dos 90% transformou-se rapidamente em munição em discussões políticas sobre austeridade. Paul Ryan, um congressista republicano, citou a "evidência empírica conclusiva" [de Reinhart & Rogoff] em um programa orçamentário que demandava cortes expressivos nos gastos públicos americanos. Em uma carta para os ministros de Finanças da União Europeia em fevereiro, Olli Rehn, vice-presidente da Comissão Europeia, fez uso do "amplamente reconhecido" limite de 90% como uma razão para pressionar pela continuidade dos cortes fiscais europeus. Esses tipos de retórica ajudaram a fazer com que o número de Reinhart-Rogoff se tornasse o tema de uma disputa áspera e implacável. E, nesta semana, um trabalho de pesquisa novo jogou lenha na fogueira ao questionar essa figura dos 90%.

O cálculo de 2010 foi relativamente simples. Os autores [Reinart & Rogoff] já haviam se valido de dois séculos de dados de dívida pública para sua proficiente história financeira publicada em 2009, "This Time is Different" [base do livro dos mesmos autores. "This Time is Different: Eight Centuries of Financial Folly" - "Desta vez é Diferente: Oito Séculos de Loucuras ("folly" pode ser também "asneira") Financeiras", em tradução livre].  Em seu artigo, Reinhart e Rogoff dividiram os números em quatro categorias de endividamento e tomaram as taxas médias de crescimento para cada um deles. Verificaram que a dívida pública tinha pouco efeito sobre as taxas de crescimento até que ela atingisse 90% do PIB. Nesse patamar as taxas de crescimento caíam então bruscamente.  Ao longo de toda a amostragem de dois séculos (de 1790 a 2009),  o crescimento médio afundava de mais de 3% ao ano para apenas 1,7% tão logo a dívida ultrapassasse aquele nível crítico. Numa amostragem menor no pós-guerra, o declínio é mais dramático -- o crescimento médio cai de cerca de 3% para -0,1% depois que o patamar dos 90% do PIB é alcançado.

A intensidade desse ponto de inflexão atraiu muita atenção.  No jargão econômico, a relação dívida-crescimento não era "linear", com as taxas de crescimento decrescendo regular e gradualmente à medida que a tomada de empréstimo [a dívida] aumentasse. Em vez disso, a dívida parece benigna até que um ponto crítico seja alcançado e, a partir de então, deixa de sê-lo. Os autores concluíram que, ultrapassado o limiar dos 90%, as percepções de risco pelo mercado podem sofrer um salto. Isso poderia traduzir-se em taxas de juros crescentes ou em estresse do mercado financeiro, forçando escolhas duras: austeridade, inflação ou default (não-pagamento).

O artigo novo, por Thomas Herndon, Michael Ash e Robert Pollin da Universidade de Massachusetts, Amherst [ver aqui], procurou reproduzir os resultados de Reinhart & Rogoff (R&R) para o período pós-guerra. Os autores consideram que erros na análise feita induziram R&R a subestimar o crescimento médio com níveis de dívida altos. Um erro de código em sua planilha Excel eliminou vários países do conjunto de dados. Dados de pós-guerra de vários anos críticos da Nova Zelândia foram deixados de fora, omitindo assim um período em que tanto o nível da dívida quanto a taxa de crescimento do país eram elevados.  E os autores consideram que o método de R&R para calcular crescimento médio atribuiu peso exagerado para dados não representativos (incluindo um ano de dados extremamente ruins da Nova Zelândia). Com isso, os autores do novo artigo avaliam que o crescimento médio pós-guerra acima do patamar de 90% deveria ter sido informado como de 2,2% e não -0,1% (ver figura).

Discrepância e discordância - Crescimento médio anual do PIB (para 20 economias avançadas), em função do nível de dívida em percentual do PIB - (mean = média; median = mediana) - Fonte: "Dívida pública elevada coíbe coerentemente o crescimento econômico? Uma crítica a Reinhart e Rogoff", por Thomas Herndon, Michael Ash e Robert Pollin, abril de 2013. - (Gráfico: The Economist).

Esse novo artigo gerou falatório em Washington, onde estrategistas se juntaram nesta semana para as reuniões anuais de primavera do FMI e do Banco Mundial. Ainda assim, há menos discrepância entre os dois estudos do que se possa imaginar.  Em uma resposta ao artigo de Herndon, Ash e Pollin, R&R reconheceram o erro de código [na planilha Excel]. Eles também atribuíram a aparente "ausência" de dados ao fato de que seu conjunto de dados é um trabalho em andamento. Por exemplo, atualizações de sua análise publicadas no final de 2010 e em 2012 incorporam números recentemente incluídos.

O mais importante é que R&R indicam que na sua análise não enfatizaram nenhum número em particular, mas usaram vários cálculos de maneira consistente. Eles calcularam a média tanto para o período pós-guerra quanto para o intervalo de dois séculos. Eles também apresentaram taxas "medianas" de crescimento de um lado e outro do patamar limite, assim como taxas médias. Em seu artigo de 2010, a mediana da taxa de crescimento acima do limite de 90% é de 1,9% durante o período 1790-2009 e de 1,6% no período pós-guerra -- R&R argumentam que esses números estão na mesma faixa de valor dos números de Herndon, Ash e Pollin.

Ambos os grupos de autores identificaram uma relação negativa entre dívida e crescimento. Mas, enquanto o trabalho de R&R indica um "tranco" súbito no crescimento quando uma vez a dívida atinja um certo nível, seus críticos [Herndon, Ash e Pollin] avaliam que as taxas de crescimento simplesmente decrescem suavemente. Para evidenciar seu ponto de vista, estes últimos dividiram os países com relação dívida/PIB acima de 90% em duas subcategorias: os que estavam abaixo de 120% do PIB e os que estavam acima desse valor. O crescimento médio no intervalo 90-120% é de 2,4%. Para países com dívida acima de 120% do PIB, o crescimento afunda para 1,6%. Isso faz a relação parecer linear.

Conclusões categóricas sobre limites ou limiares são enganosas ou evasivas. Um artigo de 2010 do FMI conclui por "alguma evidência" de um limite de 90%; um estudo de 2011 do Bank for International Settlements (Banco para Liquidações Internacionais) identifica um limite de 85%. Mas, outra análise do FMI publicada em 2012 concluiu que "não há limite específico que, consistentemente, preceda um desempenho de crescimento abaixo do par" ["sub-par" em inglês é algo que está abaixo do nível de qualidade, desempenho, etc, esperado -- ou, também, algo que está abaixo do valor normal ou médio]. Os custos de um crescimento mesmo que moderadamente mais lento podem, entretanto, se acumular -- R&R alertam que a pendência sobre dívida média já dura mais de 20 anos.

Essa ruidosa disputa mais recente não ajuda em nada para encontrar a resposta à questão sobre as causas do problema.  Crescimento mais lento do PIB pode ser mais a causa do que o resultado de uma dívida crescente. Em seu trabalho acadêmico R&R reconhecem que esse enigma "não foi completamente solucionado", mas algumas vezes têm sido menos cuidadosos em artigos na mídia. Este, talvez, seja seu erro maior. A relação entre dívida e crescimento é um tema carregado de conteúdo político. É nessas áreas que os economistas têm que se manter nos padrões os mais rigorosos.

Fontes

- "Growth in a time of debt", Carmen Reinhart and Kenneth Rogoff, NBER Working Paper 15639, January 2010.

- "Does high public debt consistently stifle economic growth? A critique of Reinhart and Rogoff", Thomas Herndon, Michael Ash, and Robert Pollin, PERI Working Paper 322, April 2013.

- "Growth in a time of debt", Carmen Reinhart and Kenneth Rogoff, American Economic Review, May 2010.

- "Public debt overhangs: advanced-economy episodes since 1800", Carmen Reinhart, Vincent Reinhart, and Kenneth Rogoff,Journal of Economic Perspectives, Summer 2012.

- "Public debt and growth", Manmohan Kumar and Jaejoon Woo, IMF Working Paper, July 2010.

- "The real effects of debt", Stephen Cecchetti, Madhusudan Mohanty, and Fabrizio Zampolli, BIS Working Paper 352, September 2011.

- "The good, the bad, and the ugly: 100 years of dealing with public debt overhangs", IMF World Economic Outlook, Chapter 3, October 2012.

[O artigo "Shocking Paper Claims That Microsoft Excel Coding Error Is Behind The Reinhart-Rogoff Study On Debt", de Mike Konczal, mostra um trecho da planilha Excel do artigo de R&R -- nele se pode ver, na área em azul, os dados em falta nos cálculos dos autores:


Como diz Konczal, somente com esse erro é possível obter os resultados publicados por R&R, e isso contribui grandemente para explicar porque tem sido impossível para outros estudiosos reproduzir aqueles resultados. Se esse erro configurar-se como tendo sido realmente feito pr R&R, tudo que espero (diz Konczal) é que historiadores futuros registrem que um dos pontos empíricos centrais para prover a base intelectual para o movimento global rumo à austeridade no início dos anos 2010 baseou-se no fato de que alguém acidentalmente não atualizou a fórmula em uma linha de uma planilha em Excel.]

Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart são economistas da Universidade de Harvard - (Foto: Bloomberg).


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