segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O fantasma da inflação encurrala a Argentina

[O texto que traduzo abaixo foi publicado no jornal espanhol El País de ontem. O que estiver entre colchetes e em itálico é de minha responsabilidade. Embora um pouco longo, o artigo lembra situação quase idêntica que vivemos há pouco mais de duas décadas, antes do Plano Real. Vale também como um alerta para o foco excessivo no consumo, único ponto em comum entre Dilma e a medíocre Cristina Kirchner. No mais, estamos muito melhores que os argentinos, embora sempre sacaneados por eles.]

Na Argentina se pode comprar a prestação desde uma alface até uma passagem de avião. Uns pagam com cartão de crédito porque não têm outra saída senão endividar-se, e outros porque sabem que as últimas mensalidades que pagarão sairão mais baratas por causa da inflação. A publicidade dos bancos não busca vender planos de poupança e sim que os clientes adquiram seus cartões de crédito, e paguem tudo o que possam com eles em prestações.

O governo baseou sua gestão em promover o crescimento via consumo [qualquer semelhança com o governo Dilma neste quesito não é mera coincidência, mais jamais cometerei o pecado de nivelar a ex-guerrilheira com a medíocre Cristina]. E o país cresceu de 2003 a 2011 a uma média de 7,5%, mais do que nunca cresceu em dois séculos de existência. Ganharam os bancos e ganhou a maioria da população. A inflação seguia como uma moto, e os salários subiam como foguetes. Até que, no ano passado, o PIB despencou de 8,9% para 2%.

A inflação, no entanto, seguiu aumentando de forma ininterrupta. Era como um familiar incômodo sentado à mesa, que o chefe da família trata de ignorar -- e, quanto mais o ignoram, mais ele perturba. Em 2007 tentou-se escondê-lo, cobrindo-o com um lençol -- ou, o que dá no mesmo, o governo interveio no Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec), baixou de forma grosseira a inflação e as estatísticas perderam toda a sua credibilidade.  As cifras oficiais falam agora de uma inflação de 10,85, e as extraoficiais a situam em cerca de 25% [ver postagem anterior sobre esse comportamento argentino].

A presidente Cristina Fernández faz apenas menção à inflação, e quando o faz é para explicar que ela não deve ser uma prioridade. Nos mais de 200 discursos que fez no ano passado, mencionou em 432 ocasiões a palavra "crescimento" -- e apenas 24 vezes falou em inflação. Mas, houve um dia de setembro em que ela a mencionou 26 vezes, quando os estudantes de Harvard lhe perguntaram por ela.  E esta foi parte de sua resposta:

"Se realmente a inflação fosse de 25% (...), de onde as pessoas tiram dinheiro? Me encantaria Nicole, assim como a Kevin, convidá-la a ir a Buenos Aires para ver o que é o consumo em Buenos Aires, passear por Buenos Aires. É uma cidade lindíssima. Convidá-la a ver os restaurantes cheios, os shoppings cheios, as pessoas consumindo. Se realmente a inflação fosse de 25% ou 26%, o país iria pelos ares [Dona Cristina se esqueceu de que vencemos uma inflação de 80% ao mês ...]. Não poderíamos ter pago os bilhões de dólares que pagamos, não poderíamos ter sustentado um crescimento da economia como o que sustentamos. E, muito menos, teríamos conseguido a inclusão de milhões de excluídos que hoje estão consumindo e têm seguro social ou um trabalho em uma cooperativa, ou um emprego formal".

[Aos interessados, eis o vídeo da reunião de Cristina Kirchner com os estudantes de Harvard.]

Vídeo da entrevista de Cristina Kirchner com estudantes de Harvard - (Fonte: YouTube).

O país não explodiu.  Apenas morreram duas pessoas e mais de 500 foram detidas durante os saques que ocorreram  em várias cidades no início do último Natal. Houve também um "panelaço" [pessoas batendo em panelas para protestar, uma das manifestações públicas de desagrado preferida dos argentinos] por cerca de 700.000 pessoas, pertencentes em sua grande maioria à classe média. E, em novembro, houve uma greve geral organizada por sindicalistas que até este ano eram aliados do governo. Enquanto isso, o FMI (Fundo Monetário Internacional) exigiu várias vezes ao governo argentino que melhorasse a confiabilidade de suas estatísticas.  Até que, no dia 1 deste mês de fevereiro, repreendeu um país pela primeira vez em seus 69 anos de existência com uma moção de censura, por não corrigir "a inexatidão dos dados" relativos à inflação e ao PIB.  E fez um ultimato ao país para que apresente até 29 de setembro cifras mais coerentes com a realidade.

Realmente, porém, os restaurantes, as lojas e os teatros de Buenos Aires estão cheios -- e, entretanto, quase todos os indicadores apontam para os 25% [de inflação] que Cristina associa com explosão social. No ano passado, o governo procurou fazer com que os acordos salariais se fizessem com "apenas" 18% de aumento, mas a maioria dos trabalhadores conseguiu um mínimo de 20%. Este ano o governo quer fixar o limite nos 20% (quase o dobro da inflação oficial), mas mesmo os sindicatos mais chegados ao governo reclamam aumentos entre 25% e 30%. As negociações começam agora, e se estenderão pelos próximos dois meses.

E foi no meio dessa tensão com os sindicatos que o governo deu um passo inédito, que implica um reconhecimento do fantasma inflacionário. Na segunda-feira [4 de fevereiro], o ministro do Comércio, Guillermo Moreno, se reuniu com as principais cadeias de supermercados e conseguiu arrancar-lhes o compromisso de que manterão congelados os preços de 1 de fevereiro a 1 de abril. No dia seguinte, o ministro conseguiu que o comércio de eletrodomésticos aderisse à iniciativa.

O que pretende o governo com essa ação? A presidente, que na semana passada escreveu 28 vezes no Twitter contra a política do FMI [deve ter sido a primeira e única vez que essa rede social serviu como palanque ao presidente de um país ...], não se pronunciou até agora sobre uma decisão que afeta tantos milhões de pessoas.  Os sindicatos, no entanto, responderam logo em seguida. Afirmam que o governo pretende estabilizar a inflação só nesses dois meses, para que os acordos salariais se concluam com aumento de "apenas" 20% [as aspas no "apenas" são minhas] -- mas eles, os sindicatos, advertiram que não pedirão menos que 25%.  "Esse acordo [de congelamento] pode ajudar a controlar a inflação apenas momentaneamente", prevê o economista Ernesto Kritz, "mas seu alcance será muito limitado se não for acompanhado de outras medidas macroeconômicas e fiscais, como por exemplo acabar com as restrições às importações. Na maioria das vezes em que se tentou aplicar algo semelhante nas décadas anteriores, a medida fracassou".

Entretanto, gente como Néstor Burruni, músico terapeuta e psicanalista de 53 anos, apoia o congelamento. Na sexta-feira, Burruni foi com sua mulher a uma loja no centro da cidade que havia aderido à iniciativa do governo. "Me agrada que o governo tenha políticas firmes contra o monopólio de preços, assim como as tem contra a mídia. Pelo menos se tenta fazer algo, se reconhece que há um problema. Oxalá que com essa medida alcance também a cesta básica, sem que se tenha que endividar. Para nós, comprar essa cesta básica implica gastar una 4.000 pesos por mês (cerca de 800 dólares no câmbio oficial e 600 dólares no paralelo). E não dá, a não ser que eu faça dívida com o cartão de crédito". Burruni admite que a classe média, a que pertence, é a grande relegada nas políticas sociais. "Mas, enquanto o governo continuar favorecendo aos mais pobres contará com todo o meu apoio. Não me importo de sacrificar-me".

O que os outros consumidores receiam é que os preços disparem como nunca depois de abril. Mas, por enquanto, as lojas, os comércios e os teatros de Buenos Aires continuam cheios -- e, "as pessoas, consumindo", como dizia Cristina Kirchner.

4 comentários:

  1. Como a minha ignorância em Economia é notável e confessada, vou me servir do Blog para fazer duas perguntas que me assombram amiúde:
    1) Excetuando a Economia, alguém conhece outro ramo qualquer do mundo cognitivo que pregue o consumo desenfreado, irretrito, contínuo e irresponsável de qualquer item, custe o que custar?
    2) Para o cidadão típico, poupar não deveria ser mais importante do que GASTAR em qualquer coisa inútil que lhe seja oferecida? Isso, sem dúvida, para garantir alguma flexibilidade financeira, em momentos mais difíceis (ocorre muito).
    Se alguém puder me esclarecer, lembre-se de usar português para "dummies".

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    1. AMAURI:
      Como você, também não sou economista. mas será que adiantaria ser?
      Talvez podessemos fazer um diagnóstico mais preciso, mas as ações decorrentes dessa análise não estariam em nossas mãos.
      Aqui no Brasil, a principal causa da inflação é o (des)governo,
      em minha opinião. não sobra dinheiro da fabulosa arrecadação de impostos para aplicar em obras que tenham retôrno, não necessariamente financeiro.
      A qualidade de nossos gastos é muito pequena, senão inexistente. As verbas assistencialistas, (não assistenciais) dos diversos programas que se preocupam mais em 'dar o peixe' do que 'ensinar a pescar', não garantem um futuro melhor, principalmente para os chamados 'asistidos'.
      Não tem jeito.
      Nossa inflação dispara esse ano, embora maquiada, menos do que na Argentina.
      Mas, somos a ARGENTINA de AMANHÃ!!!

      Abraços - LEVY

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    2. Levy... ah! se eu pudesse concordar mais com as suas palavras! Thanks! Minha sensação de isolamento acaba de passar. Bom dia.

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  2. Amigo VASCO:

    "EU SOU VOCÊ AMANHÃ" disse Cristina Kirchner para DILMA.

    Abraços - LEVY

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