quinta-feira, 10 de março de 2011

O jeitinho brasileiro de fazer anistia

De 1964 a 1985 fomos dominados por um regime militar duro e repressivo, que deixou profundas sequelas que ainda perduram na vida e na história do país. Nesse mesmo período houve o contraponto de quem não aceitava, nem se conformava com, a intervenção na vida dos brasileiros e ocorreram então a guerrilha do Araguaia e a guerrilha urbana. Crimes e violações dos direitos humanos ocorreram também de ambos os lados, e no meio dessa história toda, qual salame no sanduíche, ficou o povão, que a rigor não havia passado procuração a nenhuma das partes para agir em seu nome, não importa o eufemismo que cada uma delas usou e ainda usa para designar sua atuação.

Em 28 de agosto de 1979, em plena ditadura militar, o presidente de então, João Batista Figueiredo, promulgou a famosa lei n° 6.683 -- popularmente conhecida como Lei da Anistia -- que, entre outras imperfeições, favorecia os militares e os praticantes de tortura. Nessa lei já dava para sentir o jeitinho brasileiro de abordar um assunto dessa seriedade e importância, mesmo se tratando de uma iniciativa de autoproteção de um regime discricionário.

Em 2009 é que surge impressionante e contundente o tal jeitinho brasileiro de avacalhar com coisas sérias -- a Advocacia Geral da União (AGU) e o Supremo Tribunal Federal (STF)  afirmam e confirmam que a Lei da Anistia beneficia também os torturadores e demais agentes da ditadura. Anteriormente a isso, em agosto de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) havia entrado com ação no STF solicitando que fosse declarado que a Lei da Anistia não inclui os agentes da ditadura e os torturadores. Em 29 de abril de 2010 o STF rejeitou o pedido da OAB por 7 a 2. Ou seja, em outras palavras, plagiando a Igreja Católica, o STF distribuiu indulgências plenárias tornando imunes ao braço da Justiça praticantes de crimes hediondos. Não consigo deixar de vincular a decisão do STF a uma fortíssima pressão dos militares nos bastidores. -- Quando votou contra a aplicação da Lei da Ficha Limpa às eleições de 2010, o ministro Gilmar Mendes (que adoraria chamar-se Gilmar Von Mendes, por conta de seu mestrado na Alemanha em 1988) disse que o Congresso havia votado essa lei de cócoras, por conta da pressão popular -- é preciso agora saber-se a posição física adotada pelo STF quando da votação da Lei da Anistia, por conta da pressão dos militares.

Nesse meio tempo, o Brasil resolve inovar outra vez em matéria de anistia e cria as figuras da indenização financeira e da pensão vitalícia para ex-guerrilheiros -- num passe de mágica os beneficiados celeremente aceitam, de muitíssimo bom grado, transformar-se de idealistas em mercenários. Às custas do contribuinte, criou-se um bando de sanguessugas  entre os quais se incluem Ziraldo, Carlos Heitor Cony, Jaguar e outros personagens da versão mais recente da Ópera do Malandro, a do malandro guerrilheiro.

Em 24 de novembro de 2010 surge a primeira grande esperança de que o tal avacalhante jeitinho brasileiro pode nesse caso ser derrotado, e mesmo humilhado: em sentença de 116 folhas e um Anexo de mais oito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por sérias infrações aos direitos humanos dos envolvidos na chamada "Guerrilha do Araguaia", e aplicou ao país uma série de constrangedoras medidas punitivas, incluindo a exigência de revisão da Lei da Anistia -- ver postagem sobre isto.

Mal assume o governo, Dilma Rousseff, ela mesma uma guerrilheira durante a ditadura militar, define como prioritária a criação da Comissão Nacional da Verdade, destinada a apurar crimes cometidos durante aquele período negro de nossa história. Como era de se esperar, essa decisão gerou imediata reação e resistência dos militares, que enviaram documento ao ministro da Defesa com pesadas críticas ao projeto -- os trechos principais deste documento foram publicados pelo Globo de ontem, 09/3/11. Com a indisfarçável e inegável incompetência de argumentação dos militares, o texto possui pérolas como a de dizer que o regime deles durante 21 anos era "chamado" de militar ...

Enquanto isso, países vizinhos como Argentina e Uruguai continuam sua implacável e permanente busca e punição dos militares que, a exemplo dos nossos, perpetraram atrocidades contra os opositores às ditaduras que conduziram e patrocinaram. Surge mais uma vez a misteriosa diferença entre a maneira cívica, política e jurídica de reagir entre (colonizados por) portugueses e espanhóis contra fatos e feitos de mesmíssima natureza.

Bem, o circo está armado e nos promete muitas emoções. O frisson em torno da Comissão da Verdade é questiúncula frente ao imbróglio que o governo e o STF terão que resolver face à contundente condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ainda vamos ver muita gente com cara de perfeito idiota. 

2 comentários:

  1. Vasco, seu texto está um primor. O que mais me incomoda nessa questão toda é a falta de divulgação adequada dos desdobramentos do problema, que não começou ontem. E outra coisa: comissão nacional da verdade pode até ter objetivos louváveis, mas, com esse nome, está a um passo da presunção. Presunção que, aliás, permeia a discussão entre os dois lados. Lados no quais não estão, frise-se, os bravos beneficiários da verba pública. Uma bagunça. Abs.Gusta

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  2. Amigo VASCO:

    Acho que quem mais analisou o JEITINHO BRASILEIRO foi a Profª LIVIA BARBOSA de nossa UFF, em seu livro de mesmo nome.
    è um primor, válido até hoje, e talvez por gerações.

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