quinta-feira, 1 de abril de 2010

Belo artigo sobre política externa e a visita de Hillary Clinton ao Brasil

Belo artigo de meu amigo Embaixador Mario A. Santos, diplomata aposentado.
logormarca do    monitor mercantil
               30/03/2010 - 20:03

Comentário:  Avaliação de um diplomata experiente.


A visita de Hillary Clinton ao Brasil

No início deste mês a secretária de Estado norte-americano, Hillary Clinton, veio ao Brasil em missão oficial para tratar de vários assuntos, dois dos quais, Irã e Honduras, prometiam ser difíceis. No entanto, segundo o noticiário, as reuniões da secretária de Estado transcorreram dentro da normalidade das relações entre Estados, isto é, houve convergências e divergências de posições, onde prevaleceu de parte a parte o respeito do ponto de vista do outro, mesmo contrariado.
A expectativa era de que não seria assim. Em final de fevereiro, esteve no Brasil o subsecretário para Assuntos do Hemisfério Ocidental, Arturo Valenzuela, para preparar a visita da secretária de Estado. O visitante classificou como erro o Brasil não apoiar as sanções contra o Irã que os Estados Unidos procuram articular e deixou claro que seu chefe iria subir o tom no encontro com o presidente Lula e com o ministro Celso Amorim.
Na realidade, Valenzuela repetiu e, portanto, confirmou, as declarações da secretária de Estado em dezembro ultimo, quando ela reagiu à visita do presidente Ahmadinejad ao Brasil e a outros países, em novembro passado.
Em entrevista à imprensa em Washington, a Senhora Clinton disse que a aproximação da Bolívia e da Venezuela com o Irã era "uma péssima idéia" que poderia ter consequências. "Eles (Irã) são o principal apoiador, promotor e exportador de terrorismo hoje no mundo. Se as pessoas querem "flertar" com o Irã, elas deveriam pensar nas consequências. E esperamos que pensem duas vezes" (Reuters Brasil, em 11 de dezembro de 2009). A Senhora Hillary não mencionou o Brasil, mas ficou claro que o recado estava endereçado a nos também. Reagindo às declarações de Arturo Valenzuela, o presidente Lula, naquele momento em visita a El Salvador, endureceu a posição do Brasil quando declarou: "Eu vou visitar o Irã e não tenho de prestar contas a ninguém, a não ser ao povo brasileiro."
Portanto, quando a secretária de Estado aterrissou em Brasília este mês, sabia que uma mudança de posição do Brasil só poderia resultar de um processo decisório interno brasileiro, e não como consequência de pressão externa.
As declarações da secretária de Estado sobre a recepção do presidente Ahmadinejad pelos três países que visitou na América Latina foram particularmente severas. Qualquer funcionário responsável do serviço externo brasileiro teria de fazer forçosamente a leitura das declarações da secretária de Estado no contexto da Guerra contra o Terror declarada pelos Estados Unidos depois do 11 de Setembro, uma guerra difusa que é conduzida em qualquer lugar do mundo por quaisquer meios diretos e indiretos, limpos e sujos.
Estaria a secretária de Estado circunscrevendo o escopo de possíveis relacionamentos internacionais dos países latino-americanos, interditando-nos procurar aqueles países cujo regime Washington considera nocivo aos seus interesses e aos de Israel? Estariam os países latino-americanos proibidos de se meterem em assuntos que Washington considera sua reserva privada? Estaria ela proclamando uma Doutrina Hillary, do tipo "quem se relaciona com meu inimigo é meu inimigo também"? Seria essa advertência adendo à Doutrina Monroe e seu corolário roosveltiano?
Todas essas perguntas têm de ser levantadas nos conselhos internos do governo, embora custe acreditar que os Estados Unidos iriam deslanchar uma guerra surda contra o Governo Lula e sua política externa. Meios há para isso, no entanto, e no passado os Estados Unidos não hesitaram em tomar medidas contra os interesses do Brasil quando esses interferiram com os seus.
Basta lembrar o caso do embaixador Jose Mauricio Bustani, diretor da Organização das Nações Unidas para a Proibição de Armas Químicas (ONUPAQ). Ao iniciar seu segundo mandato, que terminaria em 2005, tendo sido reeleito por unanimidade com apoio dos Estados Unidos, o embaixador Bustani logo incorreu no desagrado de Washington quando entabulou negociações com o Iraque para sua adesão à ONUPAQ.
Se essas negociações tivessem tido êxito, inspetores da organização teriam pleno acesso ao arsenal de armas químicas iraquianas, mas tal eventualidade seria contra os interesses dos Estados Unidos, que alegavam que o Iraque tinha armas de destruição em massa e necessitavam manter de pé essa ficção para justificar a invasão daquele país.
Uma campanha feroz movida pelo então embaixador norte-americano na ONU, John Bolton, logrou que Bustani perdesse o cargo, algo inédito na historia de organizações das Nações Unidas. É claro que isso aconteceu durante o Governo Bush, e teve a anuência silenciosa do governo brasileiro da época.
Nem foi ela uma ação dirigida diretamente contra o Brasil, embora tivesse o Brasil trabalhado pela eleição de Bustani, mas visou a um diplomata brasileiro, que posteriormente teve ganho de causa junto ao Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho, e ilustra bem que os Estados Unidos estão dispostos a atropelar qualquer convenção internacional para defender seus interesses.
Embora os planejadores de política externa de uma potência média como o Brasil sejam obrigados a sempre pensar nos desdobramentos negativos de qualquer iniciativa internacional que seu país pretende empreender, precisam também estar atentos a evoluções positivas no cenário internacional que possam abrir espaço para atuações proativas, não só sobre temas bilaterais como também sobre problemas crônicos que vêem incomodando continuamente a comunidade internacional.
O Governo Obama, relativamente ao seu antecessor, certamente contribui para tornar mais flexível o cenário internacional ao priorizar negociações e ver confrontação como recurso extremo. Esse novo contexto oferece ao Brasil a oportunidade de projetar uma política externa que melhor corresponde a sua dimensão econômica e a sua cultura.
Não se trata de uma política externa independente, como alguns a classificam, quando interpretam "independente" como contrariar os desejos dos Estados Unidos, mas independente em termos de expressão de uma visão especifica do mundo, movida pela vontade de contribuir para reduzir tensões que emperram as relações internacionais.
Penso que a secretária de Estado entendeu essa nova postura do Brasil, isto é, não a viu como um impulso infantil de contrariar os Estados Unidos, e, ao respeitá-la, mesmo discordando, reconheceu a maturidade política de seu proponente.
Infelizmente, a imprensa brasileira se dedica pouco à política internacional, preferindo, na maior parte das vezes reproduzir matéria divulgada pelas agencia internacionais. Ademais, está acostumada a uma política externa brasileira bem comportada, que adere automaticamente a boa opinião internacional, formada nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.
Há a necessidade de fazer um mínimo de distinção entre política interna e política externa. A grande imprensa brasileira estaria prestando excelente serviço à política externa do país se analisasse as iniciativas do Governo Lula não à luz da opinião internacional, mas em função de seus méritos (ou deméritos) intrínsecos.
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Mario A. Santos
Diplomata aposentado

2 comentários:

  1. Dr. Vasco,

    Ótimo artigo do Embaixador!! Mais uma vez um texto bastante claro e esclarecedor sobre um fato importante da política externa brasileira que, a depender da grande imprensa e dos já habituais clichês jornalisticos, iria passar registrado, porém não interpretado como o foi pelo Mario!

    É bom ver que, a despeito do pouco espaço, ainda nos resta opção além da Miriam Leitão!

    Abraços e boa Páscoa!

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